Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

TV Pública detona voto secreto

A derrota do senador Renan Calheiros (PMDB-AL) por não ter emplacado o voto secreto nas sessões do Conselho de Ética, onde seu destino político é jogado, representa vitória espetacular da TV Pública no Brasil.

Depois que o ex-presidente da República e senador José Sarney (PMDB-AC), há dez anos, chamou o repórter Fernando César Mesquita, pauteiro, coordenador e repórter de política do Estado de S. Paulo, para criar o sistema de comunicação (rádio, TV e jornal) no Congresso, começando pelo Senado e depois a Câmara, o oxigênio democrático só fez avançar a relação da sociedade com o Legislativo.

Pena que os legisladores se distanciem do despertar da curiosidade popular pelo fenômeno da comunicação em que se transformou a TV Pública; escravizaram-se às medidas provisórias, que transformou a Casa em refém do Executivo, subordinado, por sua vez, aos credores do governo, beneficiários da administração governamental provisória… Enfim, transformaram-se em seres provisórios diante dos eleitores e eleitoras que, de olho na TV Senado e TV Câmara, passaram a exigir menos provisoriedade e mais autenticidade.

O vício de Mão Santa

A sede de aparecer na TV Pública mostrou aos homens públicos que tal aparecimento implica uma dinâmica dialética. O chicote volta no lombo de quem mandou dar. A livre circulação das informações, os debates, os antagonismos, os escândalos, tudo tem ido ao ar, para felicidade da democracia. Durante esse tempo, o trabalho iniciado por Sarney e Mesquita frutificou nas mãos e mentes dos seus seguidores. Os políticos descobriram a forma de aparecer e os eleitores a de melhor cobrar dos seus representantes. Interatividade psicológica total entre contrários que se negam e se completam produzindo novos conteúdos.

O costume do cliente o leva a escravizar-se ao bom produto. O trabalho das TVs Senado e Câmara, livre da canga do lucro, tem promovido essa interatidade dialética. A tese gera a antítese que produz a síntese. O que dá pra rir, dá pra chorar. O senador Pedro Simon (PMDB-RG), apreciando os fatos sob a desgraça política de Renan, destacou, na tribuna, na quinta-feira, 30/09, antes de sugerir ao presidente que dê um tempo em sua cadeira, renunciando, que depois da criação da TV Senado o interesse pelo seu trabalho aumentou extraordinariamente. Lembrou que é parado nas ruas para satisfazer a curiosidade geral. Uma delas, por exemplo, disse, busca saber sobre o jeito histriônico do senador Mão Santa (PMDB-PI). ‘Ele age assim mesmo ou é teatro?’

Mão Santa, excelente comunicador, criou um vício de comunicação que é seguido por grande parte dos seus pares. Trata-se de chamar pelo nome cada senador em plenário, ressaltando suas qualidades e jogando molho que, às vezes, não condiz com o personagem. O gesto passou a ser repetido por todos, praticamente, como homenagem que se faz entre os pares pelo ato de um ouvir o outro, atenta ou desatentamente.

Ingenuidade de Renan

Os políticos estão sob o foco popular e nessa condição não podem mais escorregar. Principalmente se propuserem a bobagem que Renan propôs, de proibir o acesso da TV Senado – que espalharia imagem para a mídia em geral – ao julgamento do Conselho de Ética. Desastre político. Oposicionistas e governistas foram imediatamente cobrados pelos milhões de telespectadores da TV Senado. As caixas de e-mails de suas excelências lotaram de mensagens de protesto. Cogita-se que os senadores desejam abrir concursos para mais funcionários, a fim de se especializarem na comunicação com a sociedade, pois a livre circulação das informações no Legislativo tornou-se algo real, objetivo, cujo efeito sobre a vida parlamentar é impactante.

Quem, em tal situação, aceitaria chancelar o absurdo proposto pelo senador alagoano, cheio de suspeitas no cartório? Com essa proposta estapafúrdia, ele deu um tapa na cara dos e das telespectadores/ras em todo o país. Ora, os clientes dessa comunicação direta com seus representantes, que sobrevivem com o dinheiro do contribuinte, que quer acerto de contas em forma de transparência total, exigem integralmente seus direitos, assegurados no capítulo constitucional dos direitos e garantias individuais e coletivas. Faltou assessoria política ao senador ou ele tem mesmo vocação para ditador, herdeiro das oligarquias latifundiárias às quais politicamente serviu, sempre, deixando de lado os conselhos adequados?

Renan esqueceu que se os seus pares aprovassem o voto secreto cairiam em desgraça como ele, frente aos seus e suas ouvintes na TV e Rádio Senado. Talvez não tenha esquecido, mas tentado passar os colegas para trás, envolvendo-os numa cilada. Ingênuo. Naquela Casa, o pessoal conserta relógio com luva de boxe.

Menos espaço, mais lucro

O contexto é o da comunicação aberta, seja nas comissões, seja no Senado, seja na Justiça. A Câmara dos Deputados se adiantou, jogando o voto secreto para as calendas. Por assimetria, como disse um assessor parlamentar do Senado, este teria que copiar a Câmara, em termos democráticos. O passo inicial nesse sentido foi politicamente doloroso para os próprios políticos. Depois que os ex-senadores José Roberto Arruda e Antônio Carlos Magalhães foram cassados, em maio de 2001, por terem violado o painel do Senado, na tentativa de conferirem quem havia votado pela cassação do ex-senador Luís Estevão (PMDB-DF), em 28.06.2000, nasceu movimento pela transparência no Legislativo. De lá para cá, as pressões se fizeram sentir em favor da livre circulação da informação.

O papel da TV Senado foi fundamental para acelerar a transparência dos atos congressuais, administrativos e políticos. A TV Câmara a seguiu e ambas rivalizam na capacidade de ser mais e mais transparentes. Os próximos passos, certamente, serão o de transformar em grandes reportagens projetos de lei que se debatem nas duas casas, para aproximar as instituições do povo.

Acostumar-se com a notícia boa e a notícia ruim, simultaneamente, representou aprendizado difícil para uma categoria social, como a dos políticos, que busca, de forma distorcida, salientar o bom e esconder o mal, como confessou certa vez ao repórter Carlos Monforte, da Globo, o ex-ministro Rubens Ricúpero, demitido, por isso, em 01/09/1994, pelo presidente Itamar Franco. As TVs privadas, ambíguas em suas coberturas, foram ultrapassadas pelas TVs públicas, visto que estas abordam os fatos mais extensiva e intensivamente, de modo que os antagonismos encontram espaço para aparecer e ser discutidos abertamente.

No momento, a cobertura dos fatos que envolvem Renan e seus comparsas na TV Senado é tão boa quanto a realizada pelas TVs privadas, afetadas pela necessidade de cortar espaço, para sobrar mais para a propaganda, a fim de elevar a taxa de lucro do capital investido no negócio. Com prejuízo do cliente, naturalmente.

Trabalho de leitura crítica

A moda pegou. A cobertura da TV Justiça, agora em canal aberto, sobre o julgamento dos 40 mensaleiros, marcou nova etapa do Judiciário, dada a atratividade que o assunto despertou na sociedade. Competentes comentaristas analisaram o julgamento nos intervalos e, à noite, deram uma panorâmica geral sobre o assunto, com vários depoimentos específicos e genéricos, formando e informando em doses cavalares. Jamais se viu isso no Brasil em matéria de comunicação no campo da justiça. Uma tremenda exposição, calculadamente preparada pela ministra Ellen Gracie, presidente do STF, para inaugurar a entrada da TV Justiça no espaço aberto da comunicação nacional.

Também a TV Nacional, com o Diálogo Brasil, tem feio trabalho competente, promovendo debate sobre educação, saúde, segurança, transgênicos, biocombustíveis, reforma agrária, reforma política, crise monetária etc., com descortíneo. Dentro da sua programação, o IPEA, Instituto de Pesquisas Econômicas, um dos mais prestigiados do país, discute, com desembaraço, questões transcendentais para a opinião pública, como o déficit da Previdência Social e outros temas, nos quais não apenas o enfoque econômico, mas também o social e político são abordados em suas interrelações dialéticas, não suficientemente ressaltadas pela grande mídia, mediante cobertura mecanicista e ideologicamente subordinada aos ditames neoliberais.

O programa Ver Tevê, levado ao ar pela TV Câmara e TV Nacional, da mesma forma vai, cada vez mais, abordando a necessidade de a discussão dos temas sociais e econômicos serem levados em todas as suas dimensões práticas, no plano da educação, da economia e da política, sob o ângulo da livre comunicação, para que soluções sejam democraticamente encaminhadas.

Com que força Renan contaria para barrar essa avalanche, no seio da qual se encontra igualmente o trabalho da leitura crítica da informação midiática realizado pelo Observatório da Imprensa, que cumpre papel histórico?

Grande mídia bate palmas

O político da bela Alagoas se suicidou quando resolveu evitar que o seu eleitor acompanhasse o desdobramento do seu próprio caso. Se tem algo que só pode ser dito entre quatro paredes, quando sua vida está devassada, é porque se esconde por trás das leis que caducaram na tentativa de cercear a informação, como, historicamente, aconteceu no Congresso, até a emergência da TV Pública.

Não resta ao Senado senão acompanhar o que nasceu e se consolidou na Câmara, ou seja, o fim do voto secreto, incompatível com a liberdade de informação dentro da Casa do povo. Se não forem corrigido pelos senadores e senadoras seus erros, reparando-os com urgência, deixará prosperar a proposta feita no Congresso do PT, favorável à extinção do sistema bicameral e a instauração de uma câmara única. Acabaria o Senado e suas prerrogativas se transfeririam para a Câmara, que seria ampliada em sua representação. O debate está aberto e vai ser objeto de discussão na TV Pública.

O próximo passo da informação livre será o de discutir os valores culturais no país que estão abastardados pela invasão do capital estrangeiro na cultura. Exemplar a proposta do secretário-executivo do Ministério das Relações Exteriores, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, ganhador do Prêmio Juca Pato, no Papo Capital, da TV Comunitária, coordenada pelo repórter Beto Almeida: o CADE precisa urgentemente analisar e coibir o oligopólio cultural predominante no país, prega ele.

Oligopólio e monopólio são a negação do consumidor. A grande mídia bate palmas para essa prática. Entra em contradição consigo mesma ao tentar ser intermediária entre a informação e o seu consumidor de notícias: na tentativa de prestar-lhe um serviço, na verdade o trai, graças ao seu posicionamento anti-crítico sobre o monopólio e o oligopólio, já que, como negócio, ela, a mídia, age monopolística e oligopolisticamente. Nega a si e mente ao cliente.

Cultura regional e universal

Se há ação das autoridades para tentar evitar a monopolização e a oligopolização econômica em marcha na cena globalizada em busca de produtividade acelerada, no mercado de bens e serviços materiais, para elevar a competitividade, por que não exercê-la, também no plano da cultura, do espírito? CADE na oligopolização e monopolização cultura. Exemplo gritante: das 1.200 salas de cinemas existentes, no território nacional, 800 foram reservadas para o lançamento, há meses, do último filme norte-americano sobre o homem-aranha. Não há espaço nem para a cultura nacional nem para outras culturas internacionais que não seja a norte-americana. Massacre cultural.

As TVs privadas, oligopolizadas, não farão, jamais, esse debate. Estariam queimando lucratividade, ligada a interesses nesse comércio cultural alienígena no qual faturam alto. Livres dessa peia do lucro, as TVs públicas poderão e precisarão fazê-lo.

Algo nesse sentido deve estar vindo por aí no projeto de lei que o ministro das Comunicações, Franklin Martins, prometeu para setembro. Se não houver uma ação nacionalista verdadeira em defesa do multiculturalismo, de modo a abrir as portas do Brasil para todos os povos, no plano da cultura, a fim de eliminar essa hegemonia massacrante norte-americana, ao mesmo tempo em que se promove a regionalização, e a conseqüente universalização da cultura nacional, a missão frankliniana estará prejudicada. Pelo que se anuncia, vem coisa boa por aí, que precisará, no entanto, passar pelo crivo da ampla crítica, antes de se transformar em lei.

O momento é propício. A derrota de Renan, cujo contra-pólo é a vitória da TV Pública, exige avanços nas conquistas sociais da cidadania.

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Jornalista, Brasília, DF