Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Um exemplo de antijornalismo

A edição 1819 da revista IstoÉ (18/8/2004) traz na capa o rosto sério de Ibsen Pinheiro, ex-presidente da Câmara dos Deputados, e a manchete: ‘Massacrado’.

A reportagem baseou-se em ‘O homem que se recusou a morrer’, relato de Luís Costa Pinto, apelidado de Lula, ex-editor da Veja, quem confessava ter perpetrado um erro jornalístico contra o então deputado Ibsen Pinheiro. Referia-se a ‘Até tu, Ibsen? Um baluarte do Congresso naufraga em dólares suspeitos’, matéria de capa da Veja em 18/11/1993 escrita por Lula.

Na matéria publicada na IstoÉ sob o título de ‘A verdade aparece’, rubricada por Weiller Diniz, Lula confessa que a checagem de Veja descobriu que a movimentação bancária de Ibsen Pinheiro não era de 1 milhão de dólares, como consta da sua apuração, mas 1 mil dólares.

Em vez de corrigir o erro, segundo o relato de Lula, Veja manteve a movimentação de 1 milhão porque o editor-executivo da revista ordenou ao repórter ir atrás de alguém que sustentasse essa informação. E, segundo o relato de Lula, obteve o ‘on’ do deputado Benito Gama: ‘É 1 milhão de dólares e Ibsen terá de responder por isso’. Assim foi publicado e assim produziu-se o erro jornalístico que, segundo a IstoÉ, levou à cassação de Ibsen Pinheiro.

Erros factuais

O caso provocou um bafafá estrondoso mas passageiro – ‘um dos maiores libelos contra os procedimentos irresponsáveis de nossa imprensa nos idos 1992-93’, segundo Alberto Dines; ‘o maior escândalo da história do jornalismo brasileiro do final do século passado’, segundo Ricardo Noblat.

Veja refutou; IstoÉ replicou; a imprensa registrou o tiroteio do camarote e, passados os 15 minutos de sensacionalismo, virou notícia velha, Quanto aos fatos, ora os fatos…

Uma simples checagem da matéria da IstoÉ evitaria a reprodução de erros factuais em artigos de, por exemplo, Luiz Egypto, neste Observatório (o furo de reportagem de Policarpo Jr. que gerou a CPI do Orçamento saiu em outubro de 1993, e não em setembro), ou Dora Kramer, no Estado de S.Paulo (a CPI reconfirmou a movimentação de 1 milhão de dólares nas contas de Ibsen; jamais houve qualquer correção da CPI, seja burocrática ou contábil, de 1 milhão de dólares para 1 mil dólares nessas contas).

À luz da checagem, o relato de Luís Costa Pinto publicado como matéria de capa da IstoÉ deve ser preservado como espécime ímpar da imprensa brasileira – não pelo seu caráter auto-incriminatório, mas pelo volume de erros factuais, imprecisões e equívocos cronológicos perpetrados. Ei-los (com grifos meus):

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1. Na terceira coluna, segundo parágrafo, pág. 30:

Numa sexta-feira do mês de setembro de 1993, o repórter Policarpo Jr., meu colega na redação brasiliense de Veja, obteve o furo de reportagem que mais tarde deu origem à CPI do Orçamento…

A entrevista com José Carlos Alves dos Santos e que deu origem à CPI do Orçamento ocorreu em 15 de outubro de 1993, como consta na Carta ao Leitor de Veja 1310, de 20/10/1993.

José Carlos estava preso em uma delegacia de Brasília por suspeita de assassinato de sua mulher, Maria Elizabeth Lofrano…

A mulher de José Carlos se chamava Ana Elizabeth, nome que consta em todos os jornais.

Na entrevista original, José Carlos mencionou o envolvimento de sete deputados e de um senador em um esquema de fraudes ao Orçamento Geral da União.

No subtítulo da matéria de Policarpo Jr. na Veja 1310, pág. 20: ‘O ex-diretor de Orçamento da União acusa 23 parlamentares, seis ministros e três governadores‘. Pelo acervo online do Banco de Dados da Folha de S.Paulo: ’15.out.1993: O economista José Carlos Alves dos Santos acusa 23 deputados e senadores, seis ministros e três governadores’.

2. Na primeira coluna, primeiro parágrafo, pág. 31:

Não falou no nome de Ibsen Pinheiro, que acabara de deixar a presidência da Câmara e, semanas antes, fora lançado pré-candidato a presidente da República numa festa do PMDB no Recife.

Ibsen está citado por José Carlos à pág. 29 da Veja 1310. Segundo os anais do Congresso, Ibsen Valls Pinheiro exerceu a presidência da Câmara dos Deputados de 2 de fevereiro de 1991 a 3 de fevereiro de 1993. Ou seja, em 15 de outubro, Ibsen deixou a presidência da Câmara já havia oito meses e 12 dias – considerar esse intervalo como ‘acaba de deixar a presidência’, o que dizer sobre uma mulher que está prestes a dar luz, que ela ‘acaba de ficar grávida’? Com esse expediente, situa o lançamento à Presidência da República de Ibsen, ocorrida em janeiro, a apenas algumas ‘semanas antes’ da denúncia de José Carlos, ocorrida em outubro.

3. Na primeira coluna, segundo parágrafo, pág. 31 e seguinte:

Cerca de dois meses depois de iniciadas as investigações parlamentares acerca dos desmandos e da cobrança de propinas na Comissão de Orçamento do Congresso Nacional, o nome de Ibsen Pinheiro emergiu associado à Máfia de Anões que corrompia o erário. O primeiro documento revelado para incriminá-lo era um cheque do ex-deputado Genebaldo Correia (que renunciou ao mandato na esteira das investigações) depositado em sua conta bancária

Seja pela entrevista original de José Carlos publicada em Veja 1310, seja pelos jornais de 21/10/1993, Ibsen Pinheiro é citado no rol dos envolvidos no escândalo do Orçamento desde o início da apuração. Caso contrário a CPI não teria aprovado, uma semana depois de ser instalada, a quebra de seu sigilo bancário e fiscal e de todos os outros acusados em 27 de outubro. Basta ler os jornais do dia 28/10/1993.

Em 5/11, O Estado de S. Paulo publica ‘Cheques envolvem Ibsen Pinheiro no escândalo do Orçamento’. Foram três cheques – e não apenas um –, todos emitidos por Genebaldo Correia a favor de Ibsen no mesmo dia, totalizando 35.000 dólares.

4. Na primeira coluna, primeiro parágrafo, pág. 32:

Horas depois de divulgada a informação dando conta da existência desse cheque, a assessoria de Ibsen Pinheiro passou a afirmar que o cheque era referente a uma transação financeira com uma camionete…

No dia 7/11/93, O Estado de S. Paulo diz: ‘A notícia de que a CPI do Orçamento descobriu três cheques no valor total de US$ 51 mil [sic] envolvendo no escândalo o ex-presidente da Câmara dos Deputados Ibsen Pinheiro teve enorme repercussão no Estado. A população surpreendeu-se também com o sumiço do parlamentar gaúcho e a demora em oferecer uma resposta à denúncia’.

No dia 9, o mesmo jornal publica: ‘Ele [Ibsen Pinheiro] até ontem (08), não se lembrava da origem dos cheques, convocou os jornalistas para explicar que eles foram resultado da transferência de uma cota de consórcio de uma camioneta F-1000′.

O segundo documento divulgado para estabelecer um elo entre o ex-presidente da Câmara e a Máfia dos Anões do Orçamento era uma fotografia tirada durante um jantar em uma ilha grega – mostrava Ibsen cercado por cinco dos sete anões do Orçamento. (…).

No depoimento de Marinalva Soares, em 4/11, ela detalhou a excursão para a Grécia, Turquia e Roma em 1991. No grupo estavam os deputados Manoel Moreira, então seu marido, Ibsen Pinheiro, Genebaldo Correia, José Geraldo Ribeiro e Cid Carvalho. A fotografia num jantar em Istambul, na Turquia, saiu na Veja 1314, pág. 31, com Ibsen ao lado de quatro dos sete anões do Orçamento.

5. No segundo parágrafo da primeira coluna e primeiro parágrafo da segunda coluna, pág. 32:

No intestino da CPI do Orçamento, que caminhava para um desfecho melancólico, pois só ia cassar deputados do chamado ‘baixo clero’ parlamentar, buscava-se uma revelação de impacto. Foi nesse ambiente que se perpetrou um dos grandes erros jornalísticos contemporâneos.

Jornais do dia 13/11 e as revistas IstoÉ e Veja da semana seguinte divulgaram essa revelação de impacto: 1 milhão de dólares nas contas bancárias de Ibsen. Antes de examinar o mérito dessa movimentação, deve-se consultar o calendário: entre o dia 20/10, quando foi criada a CPI, até 12/11, uma sexta-feira – e, segundo Lula, pouco depois das 20h, ele recebeu ‘sete boletos bancários’ de Waldomiro Diniz que ‘provavam a transferência de US$ 1 milhão’ para a conta de Ibsen numa agência do Banrisul –, passaram apenas três semanas.

Falar que a CPI ‘caminhava para um desfecho melancólico’ com apenas três semanas de investigação é precipitação, para não dizer má-fé, pois o prazo para investigação parlamentar é de pelo menos 60 dias, prorrogáveis. Como se pode falar em desfecho se a maioria dos acusados ainda não prestou depoimento à CPI? O próprio Ibsen só depôs na CPI em 22 de dezembro. Apenas em 20 de janeiro de 1994 concluiu-se o relatório da CPI que pedia a cassação de 18 parlamentares, inclusive Ibsen Pinheiro.

Só que, na carpintaria de Luís Costa Pinto, o ‘desfecho melancólico’ se encaixa com ‘cerca de dois meses depois de iniciadas as investigações’. Se colar, colou.

6. Nos parágrafos seguintes, a edição da revista Veja de 25/8/2004 se encarregou de desmentir a versão de Lula a respeito da edição da matéria de capa ‘Até tu, Ibsen?’, de Veja 1314. Em resumo: as pessoas com quem Lula teve contato naquela manhã de sábado, dia 12 de novembro, e citadas por ele, desmentem a sua versão: os jornalistas Silvania Dal Bosco, repórter da sucursal de Brasília; eu, então responsável pela checagem da revista, e Paulo Moreira Leite, editor-executivo, além do deputado Benito Gama. Quanto ao último, no relato de Lula:

Telefonei para o presidente da CPI do PC, o então deputado Benito Gama… Ele tinha o conhecimento da versão acerca de tais depósitos de US$ 1 milhão (segundo parágrafo, pág. 33).

É corretíssimo afirmar que o deputado Benito Gama fora presidente da CPI do PC Farias. No entanto, no contexto, a omissão de um detalhe é reveladora: Benito Gama era coordenador da Subcomissão Bancária da CPI do Orçamento, encarregada de examinar as contas de todos os acusados que tiveram seu sigilo bancário quebrado. Ou seja, Benito Gama era a própria versão dos tais depósitos.

Esses são os fatos verificados e checados. A verdade quando sustentada em fatos é a que prevalece, prevaleceu e prevalecerá.

Em tempo: o ex-presidente da Câmara dos Deputados Ibsen Pinheiro (PMDB-RS) foi cassado por 296 votos – e não 293, como consta no libelo laudatório ‘O homem que se recusou a morrer’, de Luís Costa Pinto.

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Ex-chefe da checagem de Veja e Época, no momento disponível para serviços editoriais, está concluindo a tradução do clássico da cultura chinesa A arte da guerra