Monday, 14 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

‘Devolva o meu São João’ e a herança tropicalista

Ronda nas redes uma discussão sobre os festejos de São João no nordeste: a invasão da música caipira do interior de São Paulo e Goiás roubando o lugar do tradicional forró pé de serra. Há algo mais do que o gosto por polêmica maniqueísta que tem predominado no ambiente público brasileiro desde, pelo menos, as jornadas de junho de 2013 e agora dá vez ao assombro diante do fluxo ininterrupto de escândalos. É uma discussão que diz respeito ao impacto das mídias e discursos na sua relação com as culturas territoriais. Mesmo em tempos de cultura participativa digital a mídia mainstream continua dando as cartas? O que explica a expansão nacional da música sertaneja: identificação estética dos brasileiros ou o poder do dinheiro?

Há uns dois anos, quando vivia em Aracaju, presenciava uma interessante discussão sobre o espaço do forró ostentação em detrimento da tradição. De um lado, triângulo, zabumba e sanfona, como ensinou o mestre Luís Gonzaga; de outro Wesley Safadão e sua legião de fãs. Trabalha na TV Sergipe, afiliada da Globo no estado. E investimos na busca da tradição numa série de reportagens chamada “São João da Gente”. Fomos até o interior mostrando a relação sagrada e profana que dá o tom e o clima desta época do ano. A  origem agrícola e a espiritualidade sincrética: plantar no São José para colher no São João. Os festejos juninos são sinônimo de mesa farta e alegria no coração.

Crédito: arquivo pessoal - Adriana Massa

Crédito: arquivo pessoal – Adriana Massa

Tendo sido um pouco nômade por conta da profissão e aprendi a tentar fugir dos estereótipos. Uma oportunidade estive com Wesley Safadão na gravação de um outro programa para a TV. A impressão foi boa, o garoto procurava ganhar honestamente a vida e aproveitava a sua onda. Era bacana ver a reação da massa a sua entrada no palco. O crescimento da música sertaneja de outros estados já se fazia notar e merecia alguns comentários críticos que este ano vieram com força maior. E se antes a polêmica se restringia ao universo do forró agora contrapõe, bem ao gosto contemporâneo, as diferentes tribos. As vozes do agronegócio e o sertão nordestino disputam o microfone.

A internet é o ambiente propício para a campanha “Devolva meu São João.” Elba Ramalho, em show na Avenida Paulista apoiando a causa, disse que o São João não era festa de peão. Cantando no Recife, Marília Mendonça bradou que quem quer o sertanejo é o povo.

Há 50 anos artistas nordestinos criaram em São Paulo o tropicalismo, cuja síntese era o rompimento contra visões preconceituosas. Gilberto Gil teve a intuição ao enxergar na Banda de Pífanos de Caruaru a mesma vitalidade do álbum Sargent Peppers e Lonely Hearts Club Band dos Beatles. E fundiu no seu som as duas referências. Era o local que queria ser global, nossos tempos parecem buscar uma demanda contrária.

Da mesma forma como havia na época do tropicalismo algo além dos protestos contra a guitarra elétrica, a dicotomia entre forrozeiros e sertanejos é a superfície de camadas mais profundas. Diante dos fluxos de informações desterritorializados da contemporaneidade, a resistência pode estar no fortalecimento dos vínculos com as culturas locais. O global que quer se local. Esse é um importante espaço simbólico e revela a demanda por jornalismo local que possa potencializar os agenciamentos de causas como a defesa do espaço do forró no São João. Sem visões puristas ou ingênuas.

Em Aracaju, conheci também a praia dos artistas, reduto da contracultura de onde brotaram vozes de resistência no jornalismo. ‘O Capital” e “Folha da Praia” são  jornais editados há décadas e constituíram subjetividades que hoje a moçada  captura e faz circular: do impresso ao digital. A herança tropicalista antropofágica continua a ser uma referência, mas é ela que nos faz olhar também para a tradição, não como sinônimo de imutabilidade ou intolerância, mas de fidelidade ao que nos constitui. A João o que é de João.