No dia 21 de março de 2023, o presidente Luís Inácio Lula da Silva concedeu entrevista ao site Brasil 247. Em determinado momento, ele relembrou momentos da prisão em Curitiba: “Entravam três ou quatro procuradores lá e perguntavam, ´tudo bem?´. E eu falava: ‘não está tudo bem, só vai ficar tudo bem quando eu f*der esse Moro’”. Imediatamente, o petista levantou a possibilidade de o palavrão ser cortado, mas a entrevista estava sendo transmitida ao vivo pelo YouTube. Como quem fala demais tropeça na própria língua, dias depois a Polícia Federal (PF) divulgou um plano da maior organização criminosa do país contra servidores públicos e autoridades, incluindo o ex-juiz e, então senador, Sergio Moro.
Conforme artigo publicado no Diário Carioca, esse episódio ilustra como, em tempos de redes sociais, o desejo de estar em evidência faz com que todos tenham uma opinião sobre tudo. Principalmente quando a figura em questão é política. E, nesse universo de cliques, curtidas, comentários e compartilhamentos, o que realmente vira notícia?
Na ocasião, o que não faltou foi nobre parlamentar tentando surfar a onda – a favor e contra. Deputados do Partido Liberal (PL), União Brasil e Podemos acusaram Lula de ter cometido crime de responsabilidade pela declaração contra um senador. Trata-se de um direito da oposição, mas é impossível que o jornalista ignore a contradição: depois de Jair Bolsonaro, dá para imaginar que um presidente possa sofrer impeachment por declarações infelizes? E será que o público tem informação o suficiente para chegar a essa conclusão?
Cada um tenta construir sua própria novela com peças de outras histórias – orientados por jornalistas em assessorias de comunicação – e o que sobra é uma colcha de retalhos feita sob medida para os fanáticos. Um universo de intrigas dentro de um palavrão, mas não apenas em termos de política: ao tentar fazer o jornalismo caber nas métricas dos algoritmos, como fica o papel da imprensa no esclarecimento e contextualização dos fatos noticiados?
O papel do jornal em uma época sem papel
Com o declínio da influência jornalística como quarto poder, tornou-se raro construir um ponto de análise para o leitor decidir: no jornalismo de impacto nas redes, há uma verdade subliminar – é preciso lacrar para tentar lucrar. Entretanto, por causa dos algoritmos, só porque Jair Bolsonaro protagonizou uma cena cômica tentando falar inglês no dia 6 de abril de 2025 – pedindo anistia aos envolvidos no 8 de janeiro – a notícia tem que ser servida ao público com limitação de caracteres, hashtags, sorvete e pipoca?
Até que ponto uma notícia que gera muito engajamento transforma, de fato, uma sociedade? Esse debate sempre existiu, mas ganhou novos contornos na internet, um contexto que o jornalismo procurou ocupar efetivamente a partir dos anos 1990, com seus valores, técnicas e linguagem tradicionais. Porém, rapidamente se constatou que o jornalista é apenas mais um dos atores nesse espaço, no qual apurar os fatos não é prioridade. Além disso, a série de reportagens Snowfall ilustra como o desenvolvimento de uma linguagem própria para a internet foi lento e se mostrou ainda mais trabalhoso do que nos tempos do impresso, TV e rádio.
Nesse cenário, embora o jornal de papel ainda exista, os jornais – independentemente de sua mídia – estão perdendo o seu papel. Entre os que contribuíram para o desenvolvimento da profissão no Brasil, Alberto Dines afirmou: “o jornalismo é a busca pela circunstância” (1986, p. 25)”. Mas na eterna procura pelo fato novo, qualquer assunto é notícia? Nas palavras de Clóvis Rossi, deve-se “fornecer a seu leitor, telespectador ou ouvinte o quadro mais completo possível de uma determinada situação, para que ele tenha todos os elementos de análise para formar seu próprio juízo” (1986, p. 6). A história demonstra, contudo, que o jornalismo precisa de tempo e estabilidade econômica para atingir o seu potencial em benefício da sociedade.
No auge do prestígio da profissão, o Super Homem – herói mais poderoso das histórias em quadrinhos – era repórter. Tempos ilustrados por reportagens como a série publicada por Ricardo Kotscho, no Estado de S. Paulo, denunciando mordomias no governo federal durante a ditadura. Na ocasião, um leitor de Joinville, Santa Catarina, comprou os exemplares, mandou emoldurá-los e declarou: “Este é um documento que vou guardar para meus netos lerem e verem através destas páginas como era o Brasil do ano de 1976, suas injustiças, os privilégios e o papel que desempenhava um jornal” (1986, p. 56). Ainda de acordo com o jornalista, “embora não conste em nenhum manual de jornalismo que o repórter tem, entre outras, a função de acabar com a fome, sempre é bom poder ajudar alguém com aquilo que a gente escreve” (1986, p. 67).
Jornalistas ou jornaleiros?
Ilustrando como o campo mudou rapidamente, poucos anos após o relato acima, Kotscho foi contratado pela Folha de S. Paulo, onde “em vez de passar dois ou três dias levantando uma matéria para esgotar o assunto, a ordem agora era fazer duas ou três matérias por dia.” (1990, p. 90). Estava ficando para trás a era do copidesque e, com ela, um período em que as atribuições nas redações eram claras e havia mais tempo para trabalhar.
Desde então, o jornalista foi assumindo diversas funções técnicas, complicando o seu papel tradicional na apuração e edição. Nos anos 2020, o jornalismo é diferente do exercido há décadas porque ele é feito de forma diferente. Hoje, a aventura é produzir o máximo de conteúdo por dia.
Diante disso, até que ponto a agressividade dos comentários nas postagens – fato comum na internet – é um indício do conflito entre as exigências atuais do mercado e o compromisso tradicional da profissão com a prestação de serviço à sociedade? Por outro lado, qual é a porcentagem do público que exige um jornalismo combativo e que assina ao menos um jornal, revista ou portal?
A profissão necessita de tempo para ser desenvolvida adequadamente e isso custa caro. Na eterna busca pelo próximo furo, a área precisa cumprir uma pauta fundamental: como garantir a sua sustentabilidade econômica sem comprometer valores consolidados, como imparcialidade, transparência e objetividade?
Enfim, como descrito na notícia que ilustrou o início deste artigo: trata-se de um universo em um palavrão.
REFERÊNCIAS
Dimenstein, G.; Kotscho, R. As aventuras da reportagem. São Paulo: Summus, 1990.
Dines, A. O papel do jornal. São Paulo: Summus, 1986.
Ferrari, P. Jornalismo digital. São Paulo: Contexto, 2003.
Moser, M.; Ringel, F. (2025). Jornalismo e assessoria de imprensa no contexto comunicacional brasileiro: Fronteiras fluidas ou campos em conflito? E-Compós. https://doi.org/10.30962/ecomps.3156
Kotscho, R. A prática da reportagem. São Paulo: Ática, 1986.
Ringel, F. Um universo em um palavrão. Diário Carioca, on-line, mar. 2023. Disponível em: < https://www.diariocarioca.com/artigos/um-universo-dentro-de-um-palavrao/ >. Acesso em 5 fev, 2025.
Rossi, C. Vale a pena ser jornalista? São Paulo: Moderna, 1986.
Sodré, N. W. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999.
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Fernando Ringel é jornalista, professor universitário e atua nas áreas de produção de conteúdo/assessoria de comunicação.
Vanessa Neves é jornalista, atua como editora do jornal Diário Carioca nas editorias de cultura, estilo e dá pitacos na editoria de política.