Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A arma econômica foi o meio privilegiado dos Estados Unidos de intervir na América Latina

(Foto: Reprodução)

Duzentos anos após o discurso do presidente James Monroe, o historiador Jean-Jacques Kourliandsky, nessa entrevista ao “Le Monde”, descreve a maneira como o imperialismo norte-americano se impõe ao Sul do continente.

Em 2 de dezembro de 1823, o presidente dos Estados Unidos, James Monroe (1817-1825), fez um discurso condenando toda interferência europeia nos assuntos do continente americano, o que ficou conhecido como a Doutrina Monroe. Em 1904, Theodore Roosevelt (1901-1909) adicionou um “corolário”, ao entregar uma interpretação expansionista desta doutrina, abrindo caminho para a ingerência dos EUA na América Latina.

Le Monde – Em que contexto o Presidente Monroe proferiu o seu famoso discurso, em 1823?

J.J. Kourliandsky – Os Estados Unidos não eram a potência que são hoje. Eles temiam a interferência de grandes impérios europeus, nomeadamente o do Reino Unido, cujas tropas ocuparam e queimaram a cidade de Washington em 1814; o da França, que tentou retomar Santo Domingo (atual Haiti), durante a expedição lançada em dezembro de 1801; o da Espanha, que tinha por objetivo recuperar suas colônias americanas que tinham conseguido se emancipar. Para todo o continente americano, a Europa representou uma ameaça militar contra a qual o discurso de Monroe soa como estando na defensiva. A Doutrina Monroe, em poucas palavras, significava “a América para os americanos, não para os europeus”.
Por outro lado, o corolário de Roosevelt de 1904 é ofensivo. Desta vez, é “a América para os Estados Unidos”. Este discurso é proferido quando os EUA já haviam anexado metade do México, durante a Guerra Mexicano-Americana, de 1846 a 1848, e já haviam expulsado a Espanha do continente americano (Cuba, Porto Rico) e do Pacífico (Guam, Filipinas) em 1898. Washington anexou a zona do Canal do Panamá, em 1903 até a sua restituição em 1999, e aumentou suas intervenções militares na região, particularmente na América central, Haiti e República Dominicana. Mais tarde, a Guerra Fria estendeu o corolário Roosevelt para o resto do mundo.

Você identifica um terceiro estágio desta doutrina…

Na sequência dos ataques de 11 de setembro, um documento da administração George W. Bush, tornado público em setembro de 2002, justifica as invasões do Afeganistão, do Iraque, em março de 2003, e outras tantas intervenções como ações preventivas legítimas, frente a potenciais ameaças alegadas pelos Estados Unidos.

Quando os latino-americanos começam a parecer preocupados com o intervencionismo dos EUA?

A política imperialista de Washington na região não começa com a Doutrina Monroe em 1823, como dizemos hoje anacronicamente. Ela se inicia mais de vinte anos depois, quando da guerra contra o México. Num famoso editorial da The United States Magazine e da Democratic Review, publicado em 1845, o jornalista John L. O’Sullivan enfatizou o “destino manifesto” dos Estados Unidos para “se expandir no continente”, e o fez com uma série de justificativas xenófobas no limite do racismo: como os mexicanos são incapazes de desenvolver as terras que ocupam, cabe a nós fazermos isso. A Guerra Mexicano-Americana deu destaque à desigualdade das relações de força, em que os Estados Unidos apostarão para levar a cabo sua forma de colonização do centro-sul do continente americano – anexionista no caso do México, imperialista no resto do continente.

Em 30 de abril de 1948, em Bogotá, foi criada a Organização dos Estados Americanos (OEA), reunindo os países do continente e afirmando a necessidade de respeito a sua soberania.

Paralelamente à aplicação da Doutrina Monroe, no final do século XIX, os Estados Unidos tentaram vender a ideia do panamericanismo, segundo a qual estariam ligados o norte e o sul do continente. Várias conferências foram organizadas, sem que realmente se implementasse essa ideia. Após a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria representou uma verdadeira ameaça da União Soviética aos interesses dos Estados Unidos. A OEA é então criada no Hemisfério Ocidental, espelhando o Plano Marshall na Europa. Um programa de segurança da OEA é colocado em vigor em parceria com a Junta Interamericana de Defesa e a Escola das Américas. É aqui que são treinados milhares de soldados da região latino-americana, que então aplicaram a “doutrina de segurança nacional”, ou seja, golpes das forças armadas para evitar a chegada ao poder de líderes demonizados como “comunistas” e potenciais aliados da URSS. Tudo isto não impede a prosseguimento do bilateralismo que responde ao corolário de Roosevelt, marcado por intervenções de diferentes ordens cada vez que um governo progressista chega ao poder na região, ou por intervenções militares diretas dos Estados Unidos (Guatemala em 1954, Panamá em 1989), ou através da OEA (República Dominicana em 1965), ou incentivando o uso da violência pelo exército (Chile em 1973) ou de oponentes militarizados (Cuba em 1961).

Contudo, em seu estatuto, a OEA afirma pretender resolver disputas pacíficas entre seus estados membros.

A OEA é uma invenção dos Estados Unidos, que financia quase três quartos dela. Onde está a sua sede? Em Washington. Onde fica a sede do Banco Interamericano de Desenvolvimento? Em Washington. A OEA decidiu excluir Cuba em 1962. A OEA patrocinou a intervenção militar na República Dominicana, em 1965, para evitar o retorno ao poder de Juan Bosch, presidente que deixou o cargo em 1963, após golpe do general Elias Wessin. Em última análise, a agenda da OEA é a dos Estados Unidos. A OEA é um dos instrumentos da sua diplomacia de influência. Seu secretário-geral atual, Luis Almagro, foi ministro das Relações Exteriores do Uruguai sob a presidência de José Mujica [2010-2015], um homem de esquerda. Mas, ao chegar a Washington, Sr. Almagro mudou de ideologia, contribuindo para a suspensão da Venezuela chavista da OEA, substituída pela Venezuela de oponentes pró-Washington.

Os países latino-americanos tentaram diversas vezes se organizar sem os Estados Unidos e fora da OEA.

Desde o final da Segunda Guerra Mundial, tem havido uma infinidade de organizações, criadas de acordo com as alternâncias políticas da região: Comunidade Andina [CAN, em 1969], Associação Latino-Americana da Integração [Aladi, em 1980], Mercado Comum Sul-Americano [Mercosul, em 1991], Aliança dos Povos Bolivarianos para as Américas [Alba, em 2004], União das Nações Sul-Americanas [Unasur, em 2008], Aliança do Pacífico [2011], Grupo Lima [2017], Fórum para o Progresso da América do Sul [Prosur, em 2019], etc. A verdadeira estrutura coletiva regional é a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos [Celac], que foi criada muito recentemente, em 2010.

Finalmente, qual é o propósito da OEA?

A OEA faz parte do sistema de influência dos Estados Unidos. Por isso, ela não foi capaz, por exemplo, de cumprir com seu papel, em relação ao golpe de Estado que derrubou o presidente hondurenho Manuel Zelaya em 2009. Os Estados Unidos não assinaram, em 1969, o tratado da OEA que criou a Comissão e o Corte Interamericana de direitos humanos, assim como não ratificaram o Estatuto de Roma, em 2002, que deu origem ao Tribunal Penal Internacional. Eles não são parte de nenhum tratado que envolva perda de soberania, partindo do pressuposto – estabelecido desde o “destino manifesto” – de que os Estados Unidos estão vocacionados a dar o tom quando o assunto são direitos, liberdades e democracia, na América Latina e para além dela.
A gestão das crises haitianas, qualquer que seja o instrumento militar planejado, corresponde às expectativas dos Estados Unidos, travestido de cobertura diplomática de circunstância. A OEA, tal como as Nações Unidas, nunca teve a oportunidade de propor uma visão alternativa à visão militarizada de Washington. Hoje, os Estados Unidos foram procurar policiais quenianos para liderar uma missão internacional de apoio à polícia haitiana, a fim de conter uma potencial onda de migração. Esses policiais não falam crioulo nem francês e são conhecidos no Quênia pela violência de seu comportamento.

A Nicarágua deixou a OEA em 19 de novembro, a Venezuela em 2019, e Cuba recusou o convite para retornar em 2009. Por que outros países latino-americanos não saem da OEA?

Os Estados Unidos valorizam esta organização que criaram como ferramenta de influência. Deixá-la seria visto como um gesto desnecessário de desafio ao poder dessa potência. Até Cuba, que foi suspensa, gostaria de ter um relacionamento normal com Washington. Embora sejam membros da OEA, os países latino-americanos procuram a sua autonomia cultivando outras alianças econômicas e parcerias com a China por exemplo – mas evitando qualquer confronto direto com os Estados Unidos. Essas parcerias são uma atitude aceita por Washington desde o fim da Guerra Fria, mas não sem exercerem a pressão considerada necessária para seus interesses.

O que resta da Doutrina Monroe?

A era do Corolário de Roosevelt e da diplomacia dos canhões já passou. Na América Latina, as questões fundamentais e determinantes hoje são econômicas e financeiras. É essa a arma, a econômica, que no momento é privilegiada pelos Estados Unidos. John Bolton, assessor de segurança nacional de Donald Trump entre 2018 e 2019 mencionou a Doutrina Monroe a respeito da Venezuela, declarando que ela estava “muito viva”. Apesar de tudo o que foi dito naquela época e mesmo no início do mandato de Joe Biden, Washington tem, no contexto do conflito da invasão russa da Ucrânia, chegado a um acordo com Caracas. A Casa Branca pode dizer: “nossa doutrina continua a mesma”, mas a realidade é diferente. Várias delegações americanas foram bater à porta da Venezuela para negociar a retomada das relações comerciais com as companhias de petróleo. O que não é novo. Durante a primeira Guerra do Golfo, em 1991, e a intervenção dos Estados Unidos no Iraque, em 2003, a Venezuela de Carlos Andres Perez, presidente de 1974 a 1979, depois 1989 a 1993, tal como a de Hugo Chávez, de 1999 a 2013, mantiveram a torneira do petróleo aberta. A OEA, que aprovou resoluções contra a Venezuela a pedido dos Estados Unidos, em 2018 e 2019, vê-se, sem que Washington tenha pedido a sua opinião, pisando em falso.
O desafio para os países latino-americanos não é estar na OEA e criar um equilíbrio de poder que permita que ela se torne uma espécie de ONU regional: eles sabem que não terão sucesso. O desafio foi apresentado pelo presidente brasileiro Lula aos seus homólogos sul-americanos em 30 de maio, durante uma cúpula em Brasília: “Devemos esquecer nossas diferenças ideológicas para construir algo duradouro, que reflita as nossas preocupações”. No entanto, após a eleição do presidente Javier Millei, na Argentina, que considera o Brasil um país comunista e Lula um chefe de estado totalitário, o horizonte da unidade latino-americana ou da América do Sul está cada vez mais distante.

Notas

Entrevista realizada por Angeline Montoya com o historiador francês Jean-Jacques Kourliandsky, publicada originalmente em francês, em 16 de dezembro de 2023, no site do jornal francês “Le Monde”, com o título original “Jean-Jacques Kourliandsky, historien: ‘C’est l’arme économique qui, en Amérique latine, est privilégiée par les Etats-Unis’”. Disponível em aqui. Tradução de Andrei Cezar da Silva e Luzmara Curcino.

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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É membro da redação da revista Nouveaux Espaces Latinos. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.