Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O que perdemos

(Foto: Reprodução Facebook – Augusto de Campos)

O presidente perdeu a condição de governar, diz a Comissão Arns. E nós? O que mais falta perder até 2022 se até aqui, 500 dias do governo, já perdemos tanto? E não foram só dois ministros da Saúde em um mês. Perdemos 11 ministros em 14 meses, o moral, o sossego, o respeito, a elegância, os símbolos da pátria — a amada virou armada —, a verdade dos fatos, a História, o público separado do privado, domar o vírus como mortal, o brasileiro cordial, o presente. E o que ganhamos além de tanto palavrão que não repito pelo pouco que sobrou de dignidade e porque tem crianças na sala?

Ganhamos ouvir do empresário Paulo Marinho (Folha, 16/5) que a Polícia Federal vazou informações privilegiadas para livrar Bolsonaro e o Zero 1 do xilindró pelas “rachadinhas”. Marinho já pediu proteção policial. Ganhamos verdades no Valor até do ex- Ministro Delfim Neto, que ascendeu na ditadura, apoiou o AI-5 e tem 92 anos. “Nunca vi um governo tão bagunçado, ninguém mais nos leva a sério, é uma grande desgraça”. Ganhamos o susto do jogo cifrado do general Mourão no Estadão, pronto a elogiar o torturador Brilhante Ustra em qualquer brecha, atacar a imprensa e insinuar um “autogolpe”. O vice escreveu que “nenhum país está causando tanto mal a si mesmo” e tinha razão, só não percebeu que o mal está na bolha que ele ocupa com Bolsonaro. Ganhamos o sentimento da vergonha.

Ouvimos o cineasta Cacá Diegues no Globo chamar o presidente de “trambolho”. Identificamos Bolsonaro com o homem que bombardeou Guernica. Ganhamos uma herança diabólica, fantasmas debaixo da cama, um presidente que dinamita o país todos os dias em meio a maior crise mundial em 100 anos. Ganhamos uma Saúde acéfala e seu ministério infestado de 9 militares. Ganhamos o Brasil como um prédio construído sem cálculos estruturais, ministros que culpam o termômetro pela febre. Ganhamos viver num delírio dentro de um pesadelo que faz bruxaria no meio ambiente e na Praça dos Três Poderes, à beira do precipício. Ganhamos um ministro da Educação que corta verbas das universidades “pela balbúrdia”, um governo que quer extinguir a Fundação Casa de Rui Barbosa e transformá-la em museu para livrá-la de cérebros pensantes. Ganhamos um governo que destrói o léxico, estimula mercadores do caos e faz “rachadinhas” na “Furna da Onça”.

Perdemos quase 17 mil vidas, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta calcula que no total serão 150 mil e o presidente quer liberar salões de beleza, barbearias, academias como serviços essenciais. Em troca, ganhamos lembranças de uma ditadura que tinha horror a cheiro de povo e a tentativa de nos isolar do mundo suspendendo o envio de notícias nacionais aos postos diplomáticos pelo mundo. Vivemos num país de milícias, evangélicos e militares. E como Bolsonaro disse na reunião em que convocou empresários a “jogar pesado” contra os governadores que optaram por salvar vidas, ganhamos a guerra, “é guerra”, ele disse. Ganhamos o medo.

Ficamos com medo das sextas-feiras, quem mais vai cair depois de Mandetta, Moro, Teich? A saída de Guedes faz o setor financeiro tremer. O conselho de Paulo Roberto Pires na revista 451 é: Raiva contra o Ódio. ”Se você não termina a leitura do noticiário com raiva é porque morreu e não sabe… Raiva não é nada de que se possa envergonhar diante de autoritarismo, truculência, ignorância, ressentimento, preconceito, racismo, misoginia, homofobia, fundamentalismo religioso e violência, muita violência”.

Ódio contamina. No dia 13 de maio, data da assinatura da Lei Áurea que encerrou a escravidão em 1888, a Fundação Palmares questionou Zumbi. “Foi um herói?, Consciência Negra Existe de Verdade?”. O ódio de Bolsonaro aos jornalistas se expandiu. Esta semana vários cartazes de Belo Horizonte apareceram com a pichação “Jornalista Bom é Jornalista Morto”. Este domingo na aglomeração de Bolsonaro e 11 ministros um manifestante bateu com o mastro da bandeira do Brasil na cabeça de uma jornalista da Band News.

O risco Brasil sobe, o real se desvaloriza, o dólar bate record, o vírus se espalha. No último The Economist, a historiadora da Universidade de Toronto, Margareth MacMillan, adverte sobre como dar a virada neste ponto crucial da História, que é a pandemia. “Tudo depende dos líderes. Enquanto Franklyn Roosevelt prometia uma América melhor nos anos 1930, Adolf Hitler destruía a República de Weimar e intoxicava os alemães com promessas de vingança pelo Tratado de Versailles. Como todos sabem, tudo acabou numa guerra mundial”. O pior é o que se segue.  “Para cada Jacinda Ardern ou Angela Merkel , líderes da Nova Zelândia e Alemanha que falam aos cidadãos sobre as dificuldades do caminho a seguir, há um mesquinho, um populista demagogo, jogando com o medo e as fantasias da população”. Contra os “líderes iluminados” que podem salvar o futuro, MacMillan enumera Bolsonaro com sua “gripezinha”, o líder do partido nacionalista indiano Bharatiya Janata Party que põe a culpa do vírus nos muçulmanos, e Donald Trump.

Aqui, como escreveu Alvaro Costa e Silva na Folha, só temos mamatas, bravatas e besteiras. Aqui, temos uma crise a cada 50 dias, desde a demissão do Secretário-Geral da presidência Gustavo Bebianno depois de entrar em rota de colisão com Zero 2. De fevereiro para cá foi tensão com a Polícia Federal, queimadas na Amazônia, as sucessivas ameaças de um AI-5, o rompimento do presidente com seu oitavo partido, PSL, e o absurdo de um discurso nazista ao som de Wagner do Secretário de Cultura Roberto Alvim. E de 20 de abril a 20 de maio, a queda de três ministros, Luiz Henrique Mandetta, Sergio Moro e Nelson Teich, sempre às sextas feiras. Além do vídeo da Secretaria da Comunicação (Secom) com dizeres aparentemente inspirados na entrada do campo de Auschwitz, “O Trabalho Liberta” (Arbeit Macht Frei).

Nesta semana decisiva da revelação do vídeo de 22 de abril que pode incriminar as “rachadinhas” de Flávio, provar que Bolsonaro cometeu crimes e ser afastado por impeachment, o vice Mourão escreveu um artigo. Vem nos lembrar quem teremos na presidência! Um general alinhado com Bolsonaro. Incurável, o presidente lança uma Medida Provisória blindando a si próprio e os gestores públicos pelas irregularidades que possam cometer nesta pandemia. Antes agraciou 73.242 militares com os tais R$ 600,00 que minha diarista não consegue receber. Terão de devolver.

“Vai morrer? Lamento. Mas vai morrer muito, muito mais se a economia ficar sendo destroçada pela tirania dos governadores”. Difícil achar que o presidente sairá incólume. Ele já lamentava em 1999 que a ditadura não tivesse matado 30 mil brasileiros. “Se vão morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente”.

Difícil achar que quem votou nele não reconhece que deu tudo errado. Ainda não pudemos concentrar nossas energias na crise do Corona, nós temos um problema a mais. Ainda vamos ver a cloroquina jogada por nossa goela abaixo.

Do neurologista inglês Oliver Sacks (1933-2015) na antologia póstuma Tudo em Seu Lugar: “Apenas a Ciência, auxiliada pela decência humana, pelo bom senso, antevisão e preocupação com os desvalidos e os pobres, oferece alguma esperança ao mundo em seu presente atoleiro”.

Do empresário Paulo Marinho, 66 anos, na Folha: “Nunca ouvi Bolsonaro dizer ‘obrigado’”.

De Aldir Blanc, 73 anos, morto este mês: “O sagrado é o modo como você se comporta”.

De Cacá Diegues, 80 anos, no Valor, “Deus ainda é brasileiro”. Será? Bye,bye, Brasil.

Do escritor Sergio Sant’anna, 78 anos, pouco antes de morrer, “não quero assustar ninguém, mas acho a peste que nos assombra simplesmente aterrorizante… O Brasil é um filme de terror”.

Do historiador Daniel Aarão Reis, 74 anos, na revista Marco Zero, sobre a possível derrota do presidente: “É um pessoal truculento, agressivo e tá muito autoconfiante. Têm armas na mão e, provavelmente, vão usá-las se não forem dissuadidos”

Do ex-ministro Mandetta, 55 anos, na saída de seu sucessor Teich semana passada: “Oremos”.

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Norma Couri é jornalista