Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Pequena lembrança de 64

(Foto: Instituto Moreira Salles)

No ônibus lotado, eu em pé, ouvia o radinho de pilha de um dos passageiros transmitindo o discurso de um dos oradores do comício pelas Reformas de Base na estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Era o 13 de março de 1964. O discurso poderia ser de Leonel Brizola, Jango falaria às 20 horas. Ali, dentro do ônibus, perto da Praça da Sé, deviam ser umas 19 horas.

Eu voltava do trabalho no SESC, naquela época ficava ao lado da praça Leopoldo Froes, em São Paulo. Trabalhava na Divisão de Orientação Social, com um grupo de jovens selecionados por concurso, chefiados por gente altamente qualificada como José Tavares, Renato Requixa e Bahij Amin Aur. Estava terminando meu curso de Direito na USP, no Largo de São Francisco, mas decidira não exercer a advocacia.

Vivia na rua Taguá, e isso poderá surpreender alguns, numa espécie de República de estudantes, no prédio do Exército da Salvação, junto ao templo na esquina com a rua São Joaquim. O primeiro andar tinha sido dedicado a abrigar jovens, na maioria universitários. Éramos dez, de origens sociais e denominações diversas, e isso criava um clima de troca constante de ideias. Nesse dia 13 de março, lembro-me de termos discutido a questão das reformas de base e o comício da Central do Brasil, sem chegarmos a um acordo, dada a visão religiosa de alguns contrários ao socialismo e mais ainda ao comunismo, acusações feitas ao governo de João Goulart.

Mais alguns dias e São Paulo seria o ponto de partida de movimentações de massa contra o governo Goulart, nas grandes passeatas chamadas de “Marchas da Família com Deus pela Liberdade”, nas quais, como hoje, religiosos apelavam a Deus diante da ameaça de um golpe comunista. A grande diferença é denominacional — nos anos 60 e seguintes, ainda era o clero católico romano tradicional quem podia levantar o povo, em defesa do credo cristão. Hoje, o catolicismo, implantado desde a descoberta, está em vias de ser suplantado no Brasil pela versão populista da religião cristã dos evangélicos. Porém, a base continua sendo a mesma — o clero cristão domina as populações pobres e de pouca instrução, protegendo os interesses dos grupos econômicos nacionais e, agora de maneira marcante, estrangeiros.

O Brasil saía da experiência do Parlamentarismo e retornava ao Presidencialismo, o Plano Trienal proposto por Goulart visava relançar a economia e combater a inflação reinante. Dois nomes estavam sempre nos jornais — Celso Furtado, ministro do Planejamento, e San Thiago Dantas, ministro da Fazenda. Um entrave surgiu ao Plano, a CGT, UNE e forças sociais de esquerda o condenaram. A inflação prosseguiu sem crescimento econômico. Restava se proceder as Reformas de Base, mas as transformações exigidas uniram militares, empresários e o clero, criando o clima para o Golpe, desfechado no dia 31 mas concluído no 1. de abril, Dia da Mentira.

Para nós estudantes, que vivíamos a efervescência do país, era a época dos órgãos reacionários Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, IPES, e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática, IBADE, aos quais se opunham o ISEB, Instituto Superior de Estudos Brasileiros e o Centro Popular de Cultura, com seus Cadernos do Povo. É a época das Ligas Camponesas, de Julião, do movimento da Reforma Agrária e da Ação Popular.

Foi nesse clima que vimos acontecer o Golpe com a implantação da Ditadura Militar, que iria mudar a vida de alguns de nós. Naqueles dias 31 de março e 1 de abril, ainda não jornalista, eu jamais poderia imaginar participar de uma oposição franca à ditadura, responsável pela perda sucessiva de empregos e a viver no Exterior.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro Sujo da Corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A Rebelião Romântica da Jovem Guarda, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.