Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Lula tem 700 mil razões para não ir à posse de Milei na presidência da Argentina

O Itamaraty deverá cuidar das relações do Brasil com a Argentina (Foto: © Luis Robayo, AFP)

Um dito popular muito antigo circula entre os gaúchos e castelhanos que vivem nos dois lados da fronteira do Rio Grande do Sul com a Argentina. Ele diz o seguinte: “Cumprimenta, mas não mostra os dentes”. Significa que se deve ser formal ao cumprimentar uma pessoa, sem, contudo, fazer qualquer demonstração de simpatia ou antipatia. Não sei se nas suas campanhas eleitorais o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) andou pela fronteira gaúcha e ouviu o tal dito. Se ouviu, é um bom conselho a ser seguido na relação com o seu colega Javier Milei, recém-eleito pelos argentinos, que toma posse no próximo dia 10 de dezembro. Vamos contextualizar a historinha que contei, como manda o manual do bom jornalismo. Milei esculachou Lula durante a campanha eleitoral, que venceu no segundo turno fazendo 55,69% dos votos. Lula o cumprimentou pela vitória nas redes sociais, sem mencionar o seu nome. No dia seguinte à vitória, o presidente eleito falou, por vídeo chamada, com o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PL) e o convidou para a solenidade da sua posse. O conteúdo da chamada foi colocado nas redes. No domingo (26/11), desembarcou em Brasília (DF) a futura ministra das Relações Exteriores, a deputada Diana Montino, com uma carta de Milei convidando Lula para a sua posse.

A carta foi entregue ao ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira. O governo Lula deverá respondê-la nos próximos dias. Diana e Vieira conversaram por mais de três horas. O que veio a público da conversa é que o esculacho contra Lula feito durante a campanha era encenação. E que a Argentina não sairá do Mercosul, portanto os negócios entre os dois países não serão abalados. Terminada a contextualização, vamos à análise dos fatos. O convite para a posse feito por Milei a Bolsonaro complicou muito a situação entre os dois países. Não pelo fato do ex-presidente ser adversário político de Lula. Mas por ele estar envolvido em dezenas de crimes de todos os calibres, vou citar os dois que considero os mais graves. O primeiro é a tentativa de golpe de estado de 8 de janeiro, quando bolsonaristas radicalizados invadiram e quebraram tudo que encontram pela frente no Palácio do Planalto, no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Congresso. O segundo foi o ex-presidente e seus ministros terem usado a estrutura da administração pública federal para executar uma política de governo de negação do poder de contágio e letalidade da Covid-19 – há matérias na internet. O relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado sobre a Covid-19 (CPI da Covid), em 1,3 mil páginas, coloca as digitais do governo Bolsonaro nas 700 mil mortes de brasileiros pelo vírus. Logo no início da pandemia, em 2020, não existia remédio e muito menos vacinas contra a doença. As pessoas rezavam para não ser a próxima vítima do vírus. Enquanto isso, o então presidente Bolsonaro ficava fazendo graça, imitando uma pessoa morrendo asfixiada, nas redes sociais.

Os crimes praticados pelo governo Bolsonaro contra os brasileiros durante a pandemia são grandes demais para serem esquecidos. Há mais um fato. Milei se elegeu prometendo um absurdo de coisas para os argentinos que só conseguirá cumprir se acontecer um milagre. Na semana seguinte à eleição já se tem um esboço do que acontece nos bastidores da formação do novo governo. O ex-presidente Mauricio Macri (2015 a 2019) está trabalhando para tentar desarmar as bombas deixadas durante a campanha eleitoral, entre elas a promessa de dolarizar a economia e romper com os dois principais parceiros comerciais do país, Brasil e China. A carta convidando Lula para a posse é ideia da turma de Macri. Por existirem muitos grupos políticos ao redor de Milei, a maioria de extrema direita, o trabalho do ex-presidente não será fácil, por vários motivos. Sendo o principal é que Milei vive criando confusões para manter a mobilização dos seus eleitores nas redes sociais. A Argentina é hoje um barril de pólvora com o pavio acesso. Armar confusão em um ambiente já conturbado é o mesmo que acender um fósforo dentro de um paiol de pólvora, como diz um dito popular usado para descrever uma situação pronta para explodir. Acrescento a essa situação o fato de que a paciência da população argentina anda curta, especialmente dos moradores de Buenos Aires. Se no primeiro ano de governo Milei não dolarizar a economia, como prometeu, o povo vai para as ruas protestar.

Os argentinos não gostam que os brasileiros se metam nos seus assuntos. A rivalidade não é só no futebol. Portanto, é muito pequena a chance dos bolsonaristas da extrema direita conseguirem se estabelecer por lá. Vão ser bem recebidos na posse do presidente. Mas é só. Depois serão tratados como intrusos. Dentro desse contexto, o bom senso recomenda que o presidente Lula fique o mais longe possível do seu colega Milei. E deixe o Ministério das Relações Exteriores, conhecido como Itamaraty, cuidar do assunto. Para arrematar a nossa conversa. A direita argentina fez a mesma aposta que a brasileira, que acreditou poder manobrar a extrema direita e colocou as suas fichas na eleição de Bolsonaro em 2018. Ao final do primeiro do governo do ex-presidente, vários líderes da direita já haviam pedido demissão e os que ficaram foram demitidos. Como vai ser na Argentina?

Reportagem originalmente publicada em “Histórias Mal Contadas”

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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.