Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Reflexões sobre o golpe

Há 50 anos, em 31 de março, o Brasil passava por um dos piores momentos de sua secular história. Sob a alegação de uma suposta ameaça socialista, militares e setores conservadores da sociedade civil depuseram o então presidente João Goulart e instauraram uma sangrenta ditadura que perdurou por duas décadas.

Para entender os motivos que levaram a governos ditatoriais – não apenas em nosso país, mas praticamente em toda a América Latina – é preciso relembrar o contexto histórico referente à Guerra Fria – o conflito não declarado entre duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética, pela hegemonia global. Na época, estadunidenses e soviéticos dividiram o planeta em esferas de influência direta. De um lado, estavam os chamados países ocidentais, comandados pelo capitalismo de Washington; de outro, os países do Leste Europeu, capitaneados pelo socialismo de Moscou.

Entretanto, no ano de 1959, Cuba, uma pequena ilha do Caribe, passou por um processo revolucionário que paulatinamente foi assumindo diretrizes socialistas, migrando assim para a área de influência soviética. Para os Estados Unidos, uma nação socialista em seu “quintal” era uma grave ameaça. Para evitar outros “maus exemplos” como o cubano, o governo ianque passou então a financiar e apoiar ditaduras miliares nos países latino-americanos.

Durante o período ditatorial, a grande mídia brasileira sempre esteve ao lado dos que estavam no poder. Primeiramente com uma intensa campanha de difamação ao governo Jango, o que veio a atrair o apoio da opinião pública para o movimento golpista. Nos dias subsequentes ao golpe, jornais como O Globo e Tribuna da Imprensa publicaram eufóricos editoriais que exaltavam os “bravos militares” que “salvaram” o Brasil do “perigo comunista”.

Um fantasma a exorcizar

Concretizada a ditadura, os grandes veículos de comunicação não noticiavam as atrocidades cometidas pelos militares. Nos últimos anos do regime, quando multidões foram às ruas para pedir a volta da democracia, a mídia hegemônica fez questão de ocultar as primeiras mobilizações que reivindicavam por eleições diretas para presidente. Nesse sentido é oportuno citar o exemplo da Rede Globo, que noticiou um comício do movimento “Diretas Já” na Praça da Sé como se fosse somente mais um evento em comemoração pelo aniversário da cidade de São Paulo.

Apesar de a ditadura militar ter acabado oficialmente em 1985, de vivermos em uma época supostamente democrática, os resquícios do regime ditatorial ainda permanecem em nossa sociedade. Seja na violência desmedida da Política Militar (enaltecida sistematicamente por programas sensacionalistas como Cidade Alerta, Brasil Urgente e Primeiro Jornal), ou com a grande concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucas famílias (basta lembrar que as grandes emissoras de televisão, por exemplo, são apanágios de 1964).

Se, na primeira metade da década de 1960, o Brasil tinha o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes), Carlos Lacerda e o jornal Tribuna da Imprensa, hoje temos o Instituto Millenium, Arnaldo Jabor, Reinado Azevedo e revista Veja. Já as atuais bandeiras dos segmentos mais conservadores de nossa sociedade, como o combate à corrução, a moralidade na vida pública e o fechamento do Congresso Nacional (apesar de aparentemente bem intencionadas) são praticamente as mesmas dos setores que apoiaram o golpe ocorrido há cinco décadas.

Diante dessa realidade, não foi por acaso que no último dia 22 de março algumas cidades abrigaram a reedição da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, famosa mobilização conservadora que ocorreu poucos dias antes do golpe civil-militar. Por outro lado, é importante ressaltar que, ao contrário do ocorrido em outros países, no Brasil, onde a Comissão da Verdade tem um caráter inócuo, ninguém foi punido pelos crimes cometidos durante o período ditatorial. Em suma, infelizmente 1964 é um fantasma que a sociedade brasileira ainda precisa exorcizar.

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Francisco Fernandes Ladeira é especialista em Ciências Humanas: Brasil, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor de Geografia em Barbacena, MG