Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A guerra na hora do jantar

As ruas e avenidas de Hanói e das outras cidades do Vietnã, como Ho Chi Minh, a antiga Saigon, já estão todas enfeitadas para os desfiles e as festividades deste sábado, dia 30 de abril. A data marca os 30 anos da libertação do Sul e da reunificação nacional, como anunciam, com orgulho, os meios de comunicação do Vietnã. Encerrada a longa guerra, o país do Sudeste Asiático vive hoje a hora do Doi Moi, ou seja: o momento da Renovação, num Vietnã que vive, 30 anos após a queda de Saigon, na economia de mercado, mas com um regime político socialista, a exemplo de seu poderoso vizinho, a República Popular da China.

A maioria dos historiadores concorda num ponto básico: o conflito entre o Vietnã e os Estados Unidos tornou-se a primeira guerra transmitida pela televisão. Na hora do jantar, anos a fio, os norte-americanos tinham como prato obrigatório aquelas cenas de horror e destruição no longínquo país asiático. O envolvimento dos Estados Unidos no Vietnã começou logo após a batalha de Diem Bien Phu, que marcou a retirada da França da região, em 1954.

Já em 1961, o presidente John F. Kennedy ordenou o envio de mais tropas à região. Mas foi seu sucessor, Lyndon Johnson, quem escalou a guerra, com 500 mil soldados combatendo por lá. E é a partir de 1965 que o conflito do Vietnã invade os lares norte-americanos: é a ‘guerra na sala de visitas’, na expressão de Michael Arlen, citada no site do The Museum of Broadcast Communications (MBC).

Sempre pela TV

Noite após noite, de 1965 em diante, o horror da guerra chegou aos lares norte-americanos, inspirando na opinião pública dos EUA sentimentos iniciais de apoio total, substituídos depois por exaustão e repúdio. Até hoje, dizem os historiadores, a guerra do Vietnã foi o evento que mereceu a mais extensa cobertura de TV. As principais redes de TV mantiveram por anos, em Saigon, o seu terceiro maior escritório, depois de Nova York e Washington, cada uma delas com cinco equipes de jornalistas e câmeras trabalhando o tempo todo.

As imagens de impacto também corriam o mundo. No Brasil, naqueles anos do Ato Institucional nº 5, a censura era feroz quanto ao noticiário político e cultural. A maioria dos meios de comunicação brasileiros derivou então para as notícias internacionais, e a Guerra do Vietnã ocupava a maior parte das páginas dos jornais e revistas, bem como os ‘jornais nacionais’ da vida na TV.

Nos Estados Unidos, as pesquisas da Roper Organization para o Television Information Office, de 1964 até 1972, demonstravam o crescente poder da TV. Em 1964, 58% dos entrevistados recebiam a maioria das notícias pela TV, enquanto 56% pelos jornais. Mas em 1972, 64% recebiam as notícias pela televisão e apenas 50% pelos jornais.

Do Tet a My Lai

O público norte-americano dos anos 70 escolhia a TV como seu principal meio de buscar informações, mas também acreditava mais na TV, já naquela época: em 1972, 48% dos entrevistados pelo Roper diziam que confiavam mais na TV, contra apenas 21% dos que acreditavam nos relatos dos jornais.

Os âncoras e repórteres de TV naquela época tornaram-se rapidamente admirados e respeitados, à medida em que o público sintonizava os canais para ficar informado sobre os acontecimentos do dia.. Durante a Guerra do Vietnã, um deles, Walter Cronkite, chegou a ser considerado ‘o homem mais confiável dos EUA’. A partir de 1967, 90% do noticiário noturno das tevês eram matérias sobre a guerra e cerca de 50 milhões de pessoas assistiam o noticiário na hora da janta, apoiando então os seus jovens recrutas.

Mas a virada começou em janeiro de 1968, com a chamada Ofensiva do Tet por parte da guerrilha e das tropas norte-vietnamitas. Ao impacto das imagens somou-se um comentário de Cronkite na TV, admitindo, pela primeira vez, que a guerra estava perdida. Logo em seguida, em março de 1968, o massacre de civis na aldeia de My Lai consolidou na opinião pública norte-americana um sentimento de repúdio. Era chegada a hora da retirada. A cobertura maciça do conflito pela TV e demais meios de comunicação influenciava o público e também os políticos. Johnson desistiu de concorrer à reeleição e, em 1969, o presidente Richard Nixon assegurou, após a posse, que garantiria ‘a paz com honra’ para os Estados Unidos. Os esforços diplomáticos, combinados com intensos ataques aéreos contra Hanói e o Porto de Haiphong, culminaram com os acordos de Paris, firmados no dia 27 de janeiro de 1973.

Trilha sonora

Na época, este repórter passava uma longa temporada na Europa e pôde acompanhar de perto a ciranda e os meneios do jogo diplomático, em torno de um palacete da Avenue Kleber. Em matéria publicada no Correio do Povo (6 de fevereiro de 1973), sob o título ‘A paz do Vietnã’, citei a entrevista coletiva com a Sra. Nguyen Thi Binh, representando o Vietcong, a Frente de Libertação Nacional do Sul do Vietnã. Recordo-me, ainda hoje, da serenidade da Sra. Binh e sua paciência diante de centenas de jornalistas e fotógrafos do mundo inteiro. E também lembro da impressão geral da mídia, naqueles dias frios do inverno parisiense: era uma paz muito frágil, como se viu depois.

Mas os acordos de Paris representaram, pelo menos, uma saída honrosa para os Estados Unidos e uma vitória psicológica para as forças do Vietnã do Norte e da guerrilha do Vietcong. Após a assinatura dos acordos, começou um cessar-fogo, foram libertados 600 prisioneiros norte-americanos e começou a retirada das tropas dos EUA e aliados. Como previsto, os acordos de Paris não encerraram a guerra (a não ser para os EUA): pouco mais de dois anos depois, em 30 de abril de 1975, caía Saigon. Aí sim, terminava o longo conflito, com a reunificação do país, dividido desde o finm da Segunda Guerra Mundial entre um Vietnã comunista ao Norte e um Vietnã capitalista no Sul.

Os últimos dias da presença norte-americana no Sul do Vietnã são lembrados pela debandada e pela aflição dos que desejavam abandonar o país, com medo das tropas norte-vietnamitas, às portas de Saigon. A escritora Joan Didion, em seu romance Democracy, de 1984, conta que o sinal de que tudo estava perdido viria pela rádio das Forças Armadas, com a mensagem ‘Mamãe pede que você telefone para casa’, seguida pela canção I´m dreaming of a White Christmas, cantada por Bing Crosby. Ficção ou realidade? De qualquer forma, uma bela trilha sonora para um final melancólico – para os norte-americanos, é claro.

Finalmente, a paz

Até hoje, passados 30 anos, a Guerra do Vietnã ainda desperta paixões e raiva entre os norte-americanos. Na semana passada, no dia 20 de abril, um veterano do Vietnã cuspiu no rosto da atriz Jane Fonda, em Kansas City. O veterano Michael Smith esperou uma hora e meia na fila de autógrafos do livro da atriz, My Life So Far (Minha vida até aqui) para cometer a agressão. Na obra, Jane Fonda reafirma seu passado de militante pacifista e, em entrevista coletiva, explicou:

‘É muito difícil, quando um país está em guerra, reconhecer que nossos líderes não estão dizendo a verdade – e que homens e mulheres estão morrendo inutilmente. A Guerra no Iraque é diferente, mas uma semelhança que tem com a do Vietnã é a mentira’.

Para The Economist, 30 anos depois, o Vietnã é hoje ‘um bom aluno’. Com a condescendência e a arrogância habituais dos britânicos diante de países menores e pobres, a revista afirma que, finalmente, os líderes comunistas do Vietnã ‘fizeram as pazes com o capitalismo’. The Economist revela que o Vietnã cresceu em média 7,4% por ano, na última década e, melhor ainda, libertou um grande número de vietnamitas da miséria.

Em 1993, o Banco Mundial apontava que 58% da população eram de pobres. Em 2002, esta cifra caiu para 29%. Apesar dos muitos problemas, alguns ainda vindos da devastação de amplas áreas do país durante a guerra, o Vietnã tem diversificado sua economia, incrementando suas exportações tanto de produtos agrícolas como de manufaturas, além de receber milhares de turistas, muitos deles norte-americanos, curiosos por ver, ou rever, as paisagens do Delta do Mekong, do Rio Vermelho ou dos altos planaltos da região central, além da antiga Saigon, hoje Cidade de Ho Chi Minh. Finalmente, pode-se dizer: a paz chegou ao Vietnã.

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Jornalista, professor, integrante da Comissão de Ética do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul