Sunday, 06 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

O pioneiro do pensamento econômico brasileiro

I

A economia política pelo método empírico: viagem aos Estados Unidos

Recém-formado em direito por Coimbra em meados de 1798, Hipólito José da Costa recebe de d. Rodrigo de Souza Coutinho, o conde de Linhares, então ministro da Fazenda e presidente do Erário, o encargo de fazer no território da América do Norte (Estados Unidos e México) o que se poderia designar, na moderna linguagem dos negócios, de comissão de prospecção econômica. Foi provavelmente Linhares quem inculcou em Hipólito o gosto pelas questões econômicas, inclinação que este manteve durante toda a sua vida, aliás revelada nas páginas do seu ‘armazém literário’: a rubrica ‘commercio’ vinha logo após a importante seção dedicada à política. Tão pronunciada era a tendência de Hipólito pelo estudo das questões econômicas que, em 1819, no auge de sua carreira jornalística, ele protestava contra a proibição dos estudos de economia política na Universidade de Coimbra[Cf. ‘Os estudos de Economia Política são proibidos na Universidade de Coimbra e não sabemos que haja no Reino escolas em que se aprendam’, Correio Braziliense, janeiro de 1819, vol. XXII, p. 84, cit. por Mecenas Dourado, Hipólito da Costa e o ‘Correio Brasiliense’, Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1957, tomo I, p. 44].

A missão nos Estados Unidos buscava levantar os recursos naturais e apreciar os conhecimentos científicos que a jovem nação independente da América do Norte mobilizava em sua marcha ascensional para o progresso econômico. Hipólito estava habilitado para fazê-lo, uma vez que, ademais dos conhecimentos práticos aprendidos em sua vida de fazenda no Rio Grande, tinha sido formado em matérias como: filosofia, direito, botânica, agricultura, zoologia, mineralogia, física, química e mineralogia.

As instruções de Linhares eram no sentido de se obter as informações as mais detalhadas possíveis sobre todos os progressos havidos na América do Norte no terrenos das artes práticas, das culturas agrícolas e dos ofícios ligados ao fabrico e manufatura de bens em geral, complementando a missão pelo encargo de recolher as espécimes e variedades de plantas e cultivos que se pudessem aproveitar em Portugal e na colônia brasileira. Atenção especial deveria ser dada ao cultivo do tabaco, então concentrado em Maryland e na Virgínia, ao passo que no México, ademais de observar as minas de ouro e prata, a instrução essencial era a de lograr subtrair o inseto e a planta da cochinilha, iludindo a vigilância rigorosa das alfândegas espanholas. De tudo, Hipólito deveria mandar relatórios circunstanciados, o que ele obviamente fez de maneira rigorosa, ao despachar notícias teóricas e comentários práticos sobre tudo o que viu e ouviu em sua longa estada naquelas partes, em 1798 e 1799.

Nessa missão Hipólito conheceu artesãos, cientistas e agricultores, ademais do futuro, Thomas Jefferson, e do então presidente dos Estados Unidos, John Adams, cuja informalidade e falta de protocolo surpreenderam um pouco o súdito de uma monarquia absoluta, rigorosa com o cerimonial. Seu ‘diário de viagem’ não é uma simples coleção de observações naturalistas e agrícolas, pois que Hipólito tece considerações extensas sobre as religiões dos americanos e sobre questões econômicas e monetárias. Não deixou de notar a preferência dos americanos pelo comércio, mais que pela agricultura, e o seu gosto acentuado pela especulação, sendo o dinheiro um valor absoluto naquela sociedade [Ver Hipólito José Costa, Diário de Minha Viagem para Filadélfia, 1798-1799. Rio de Janeiro: Publicações da Academia Brasileira, 1955. Como argumentei em outro texto, trata-se provavelmente da primeira obra sobre os Estados Unidos escrita do ponto de vista de um observador do Brasil, preocupado em trazer para a colônia lusitana da América as espécies vegetais e animais e aqueles melhoramentos técnicos que julgava poder contribuírem para o engrandecimento de sua pátria; cf. Paulo Roberto de Almeida, ‘Tendências e perspectivas dos estudos brasileiros nos Estados Unidos’ in Paulo R. de Almeida, Marshall C. Eakin e Rubens A. Barbosa (eds.), O Brasil dos Brasilianistas: um guia dos estudos sobre o Brasil nos Estados Unidos, 1945-2000, São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002]. Já naquela época, os bancos emprestavam facilmente, acima das posses reais, animando os empreendimentos e facilitando as especulações mercantis, muito embora no interior do país a falta de dinheiro condenasse os produtores ao escambo. Ele observou, também, as tendências a falências abruptas e a uma mobilidade excepcional nos negócios, traços que ainda hoje marcam a modalidade peculiar do capitalismo americano.

As características da sociedade americana, tal como descritas em seu diário de viagem – mais do que qualquer teoria econômica ou doutrina comercial, das quais os EUA continuariam, aliás, sendo importadores líquidos pelo resto do século XIX –, devem ter impressionado a mente do jovem Hipólito, determinando suas reflexões pragmáticas posteriores sobre os problemas econômicos, comerciais e monetários ‘brazilienses’.

II

A economia política pelo método teórico: leituras e escritos de Hipólito

Hipólito não foi como José da Silva Lisboa, o visconde de Cairu, um teórico da economia, muito embora não tenha repugnado a entrar em considerações doutrinárias em seus escritos da fase do Correio. À volta de sua missão americana, ele verteu para o português, em 1801, provavelmente sob a sugestão de Linhares, a História do Banco da Inglaterra, de E. Fortune, e os Ensaios econômicos e filosóficos de Benjamin Rumford [História breve e authentica do Banco da Inglaterra com dissertações sobre os metaes, moedas e lettras de cambio e carta de incorporações, por E. Fortune… traduzida da 2ª edição de Londres; impressa por ordem de S. Alteza Real o Principe Regente Nosso Senhor, por Hypolito José da Costa Pereira, Lisboa, na Typographia Chalcographica e Litteraria do Arco do Cego, anno MDCCCI; Ensaios politicos economicos e philosophicos, por Benjamin Conde de Rumford… traduzida em vulgar por Hippolito José da Costa Pereira, tomo I, Lisboa, na Regia Officina typographica, MDCCCI, por ordem superior; cf. Mecenas Dourado, op. cit., tomo I, pp. 80-81. Mais adiante, já como editor do Correio, Hipólito traduz e publica o economista suíço Simonde de Sismondi]. D. Rodrigo o enviou nesse ano à Inglaterra e à França, para ‘adquirir livros, máquinas e outros materiais para a Imprensa Régia’ [Cf. Dourado, op. cit., p. 82]. Esse tipo de literatura, muito voltada para as condições econômicas concretas do país mais avançado, então, no plano industrial, e, sobretudo, sua missão anterior aos Estados Unidos é que devem ter constituído a base do conhecimento empírico e teórico de Hipólito sobre questões econômicas e comerciais. Em qualquer hipótese, muito pouca oportunidade lhe restou, depois de sua primeira missão à Inglaterra, de aperfeiçoar suas leituras em questões econômicas, uma vez que três ou quatro dias após sua volta foi preso em sua casa, numa nova demonstração da intolerância da Inquisição portuguesa para com os suspeitos de maçonaria.

A publicação, em 1804, dos Princípios de Economia Política, de José da Silva Lisboa, o primeiro economista brasileiro, ainda encontraria Hipólito na prisão, de onde ele sairia apenas no ano seguinte, para viajar imediatamente para a Inglaterra. Foi na Grã-Bretanha – seu refúgio nos 17 anos seguintes e onde ele empreenderia o ‘ato fundador’ da imprensa ‘braziliense’ – que Hipólito continuaria sua obra de tradutor e de comentarista das atualidades nacionais (portuguesas e brasileiras) e internacionais. Ele foi um compilador das ‘coisas práticas’ da vida econômica, política, científica e literária, geralmente sob a forma mais usual da transcrição de documentos oficiais, mas muitas vezes fazendo ele mesmo pequenas resenhas e comentários pessoais, alguns não assinados ou então colocados sob pseudônimo.

O ativismo jornalístico de Hipólito não se refletiu de imediato em sua vida: ele passa três anos como tradutor e professor e em atividades comerciais– quase que de subsistência – antes de se lançar na grande aventura de sua vida, como o primeiro jornalista independente do Brasil, mesmo se ele jamais voltou a colocar os pés na sua verdadeira pátria. Foi Napoleão quem o tirou da modorra e lhe deu a grande oportunidade de se afirmar como homem de idéias e como crítico de políticas oficiais: não fosse a invasão napoleônica de Portugal talvez não tivéssemos tido o empreendimento ‘literário’ que marcou, mais que qualquer outra folha, gazeta ou pasquim, as políticas domésticas e internacionais de Portugal e do Brasil, durante os quase 14 anos de residência da corte no Rio de Janeiro [De fato, como afirma Mecenas Dourado, o Correio Braziliense ‘foi um fenômeno napoleônico’; cf. Hipólito da Costa e o ‘Correio Brasiliense‘, op. cit., tomo II, p. 580].

O Correio foi mais importante para o Brasil do ponto de vista das lutas políticas e jornalísticas pela liberdade de expressão do que como arauto de políticas ou doutrinas econômicas e comerciais. Hipólito, aliás, estava longe de ser o jacobino radical e o representante das idéias democráticas da Revolução francesa que muitos gostariam de ver. Como diz Mecenas Dourado, ‘na realidade, não era ele senão um discípulo do liberalismo inglês, partidário, em política, da monarquia limitada e repelindo as tendências revolucionárias e democráticas da igualdade rousseaunista’ [Cf. Dourado, op. cit., tomo I, p. 302]. Um estudo sobre seu pensamento econômico ainda está para ser feito, mas não parece deslocado afirmar que ele ostentava o mesmo pragmatismo e bom senso que o caracterizavam na área política, combinando um liberalismo de princípio com a aplicação de algumas medidas ‘industrializantes’ que ele tinha observado nos Estados Unidos.

A seção sobre política era mais imponente do que a comercial nas páginas do Correio. Ocorria, também, que muitos instrumentos econômicos ou comerciais eram por ele transcritos na seção ‘miscelânea’ do Correio, em meio a comentários sobre eventos de natureza política, o que confirma a confecção artesanal do seu ‘armazém literário’. Em diversos número do Correio, a seção comercial abrigava informações práticas sobre os preços de mercadorias de interesse do Brasil na praça londrina, dados que constituíam uma espécie de pesquisa de mercado à intenção dos comerciantes e um levantamento das restrições não tarifárias aplicadas a produtos de produção brasileira que entrassem em competição com mercadorias similares vindas das colônias britânicas do Caribe. O decreto de abertura dos portos do início de 1808, por exemplo, foi transcrito parcialmente no número 3 (agosto) do ‘armazém literário’, na primeira seção (política), sem outro comentário senão a expressão entre colchetes ‘Continuar-se-há’ [Cf. Hipólito José da Costa, Correio Braziliense ou Armazém literário, São Paulo: Imprensa Oficial; Brasília: Correio Braziliense, 2001, edição fac-similar, vol. I, No. 3, de agosto, 1808, pp. 167-68. De fato, o texto continha tantas incorreções que, ao final da seção ‘Miscelânea’ desse mesmo número 3, Hipólito inseriu a seguinte nota, seguida da transcrição corrigida do decreto de abertura dos portos: ‘Como a cópia do importante decreto do Príncipe Regente de Portugal que se imprimiu à folha 167 deste número sucedeu ser incorreta, aqui se insere a exata íntegra do edital a este respeito, vista a importância desde documento para o comércio’; idem, pp. 253-54].

III

A abertura dos portos e as indústrias do Brasil: Hipólito olha o futuro

Estabelecido o livre-comércio, tratou-se de criar condições para a produção local: por um alvará de 1º de abril de 1808 foram eliminadas as restrições que tinham sido impostas pelo alvará de 1785 à indústria no Brasil, decretando-se a liberdade de fundação de ‘todo gênero de manufaturas’, tanto aos vassalos portugueses como aos estrangeiros. Hipólito José da Costa, dependente das comunicações intermitentes entre o Rio de Janeiro e Londres, bem como da disseminação precária dos papéis oficiais, transcreve esse texto na seção ‘miscelânea’ do Correio nº 5 (outubro de 1808), caracterizando-o como ‘interessante, cheio de justiça e digno de louvor’ [Cf. Hipólito José da Costa, Correio Braziliense, nº 5 (outubro de 1808), edição fac-similar, pp. 421-22. Para o texto oficial do decreto, Coleção das Leis do Brazil de 1808, p. 10].

Um decreto de 11 de junho alterou a carta de 28 de janeiro na parte relativa aos direitos alfandegários: as mercadorias portuguesas e ‘carregadas em embarcações nacionais’ pagariam apenas 16% de direitos (em lugar dos 24% fixados para as estrangeiras). Um aspecto desse decreto de revisão tarifária não escapou a Hipólito José da Costa, que foi a restrição do comércio internacional brasileiro aos portos do Rio de Janeiro, de Salvador da Bahia, de Pernambuco, do Maranhão e do Pará, à exclusão dos demais. No Correio nº 5 (outubro de 1808), Hipólito, natural de Colônia (Uruguai) e crescido em Rio Grande, manifestava sua contrariedade com a restrição.

A pressão dos comerciantes ingleses conduziu à negociação do Tratado de Comércio e de Navegação, de 19 de fevereiro de 1810, repleto de cláusulas favoráveis à Inglaterra: concedia-se aos ingleses, além de outros favores e vantagens, a redução da taxa de entrada a 15% ad valorem aplicável a ‘todos os gêneros, mercadorias e artigos, quaisquer que sejam, da produção, manufatura, indústria ou invenção dos domínios e vassalos de Sua Majestade Britânica (…) admitidos em todos e cada um dos portos e domínios de Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal, tanto na Europa, como na América, África e Ásia, quer sejam consignados a vassalos britânicos, quer a portugueses’ (Artigo 15), ficando portanto as mercadorias provenientes da Inglaterra mais favorecidas que as próprias portuguesas, que pagariam 16%. O açúcar, o café e outros gêneros coloniais ficavam excluídos do comércio bilateral (Artigo 20), o que vedava o acesso aos mercados britânicos do essencial da produção brasileira.

Do ponto de vista doutrinal, a adesão da elite dirigente ao livre-comércio começou com uma das primeiras medidas adotadas pelo Príncipe Regente: tomou ele a decisão, em 23 de fevereiro, de instituir uma ‘cadeira e aula pública’ de economia política no Rio de Janeiro, atendendo a sugestão feita ao Príncipe Regente pelo baiano José da Silva Lisboa, no mesmo ato designado para ocupá-la, em sua nova condição de ‘conselheiro’ da Corte. Lisboa, o futuro Visconde de Cairu, educado na Europa, já havia escrito, em 1804, um Princípios da Economia Política [J. S. Lisboa, Princípios de Economia Política para servir de introdução ao autor dos princípios de Direito Mercantil, Lisboa: Imprensa Régia, 1804. Adepto do liberalismo de Adam Smith, mas reconhecendo os limites do industrialismo, Lisboa foi também um decidido agrarista e defensor de novas técnicas de cultivo, tendo tornado-se o principal arauto do livre-cambismo nesta fase inicial do debate econômico no Brasil], largamente inspirado nas idéias de Adam Smith.

Hipólito considerou que as pressões diplomáticas da Grã-Bretanha em favor da liberdade de comércio eram feitas em seu próprio benefício. Escrevendo no Correio Braziliense antes que se consumasse o tratado (nº 9, fevereiro de 1809), ele avaliou a inoportunidade e inconveniência de um tal acordo do ponto de vista da economia e da política do Brasil.

‘Um tratado de comércio entre o Brasil [sic] e a Inglaterra é uma das mais delicadas empresas em que pode entrar o Brasil, porque o negociador brasiliense não tem precedentes que o guiem. Os tratados que existiam entre a Inglaterra e Portugal eram fundados nos interesses mútuos de exportação dos artigos portugueses de grande consumo na Inglaterra, tais o vinho, o azeite etc., e na situação política daquele pequeno Reino, que, ameaçado constantemente por seus vizinhos, se via obrigado a solicitar a proteção da Inglaterra, ainda à custa de pesados sacrifícios. Estas duas razões cessam agora porque os produtos principais do Brasil estão longe de terem grande consumo em Inglaterra, que nela são proibidos, por causa da competência [concorrência] em que se acham com as colônias britânicas; e quanto à situação política do Brasil, este imenso território acha-se de tal maneira isolado pela natureza, que nenhuma potência lhe pode meter susto, nem causar prejuízos consideráveis, salvo a Inglaterra, embaraçando-lhe o comércio. De onde se segue que, faltando os dois princípios (do interesse mútuo e do temor) que originaram as principais estipulações dos tratados de comércio entre Portugal e Inglaterra, não podem aqueles servir de norma a este tratado do Brasil’ [Cf. Hipólito José da Costa, Correio Braziliense ou Armazém literário, edição fac-similar, op. cit., vol. II, No. 9, fevereiro 1809, pp. 129-30. Ver também Carlos Rizzini, Hipólito da Costa e o Correio Braziliense, São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1957, Brasiliana Grande Formato nº 13, p. 185].

Hipólito fazia em seguida uma série de considerações que hoje seriam consideradas como de ‘política industrial’:

‘Outra dificuldade em que se deve achar o Negociador Brasiliense é a impossibilidade de prever a vereda que tomarão os diferentes ramos de agricultura ou de manufaturas no Brasil, principalmente se o tratado tiver de existir em força por muitos anos; (…) suponhamos mais que antes de cinco anos algum gênio inventor descobre alguma substância vegetal ou mineral, capaz de fazer papel, estabelece uma fábrica no Brasil; esta fábrica deve ficar desde seu princípio arruinada pela importação do mesmo artigo de Inglaterra que, segundo o suposto tratado, nem se pode proibir, nem proporcionar com a fábrica interna pela adição de novos direitos de alfândega. Suponhamos outra hipótese (mui provável) de que vários artigos que agora se tem de receber de Inglaterra, são oferecidos dos Estados Unidos a mais cômodo preço: será político que o Governo Brasiliense se constitua agora na necessidade de não aceitar depois aquela vantajosa oferta?

‘É logo uma das considerações importantíssimas do Negociador Brasiliense a probabilidade que há de que tais ou tais artigos se possam, com o tempo, manufaturar no Brasil ou importar de países donde resultem mais vantagens que da Inglaterra. (…) de maneira que por mais talentos e perspicácia que suponha no Negociador Brasiliense, se ele não tiver a mais profunda experiência das produções do Brasil, e [o] provável caminho que tomarão os diferentes ramos da indústria, arrisca-se seguramente a lançar os grilhões àquele País, de maneira que o reduza a uma senão perpétua, pelo menos mui duradoura, dependência das nações estrangeiras’ [Hipólito, CB, vol. II, nº 9, fevereiro de 1809, pp. 130-31].

IV

O tratado de 1810 e o interesse nacional: Hipólito e a historiografia brasileira

As posições de Hipólito deram origem a uma escola de pensamento, se não protecionista e industrializante, pelo menos desconfiada do livre-cambismo e da abertura irrestrita, postura que influencia ainda hoje o universo doutrinal e político das elites brasileiras, como observado em relação às negociações comerciais multilaterais ou hemisféricas (no âmbito da projetada área de livre-comércio das Américas). A partir de Hipólito, a maior parte dos cronistas e historiadores tem palavras candentes em relação ao tratado de comércio com a Inglaterra, por vezes repetindo textualmente o que ele escreveu nas páginas do Correio Braziliense.

Hipólito analisou o tratado de 1810 com perspicácia e rigor pelo detalhe, mas também com conhecimento pessoal dos negociadores: ele faz uma ‘crítica pertinente e minuciosa, indo até aos equívocos da tradução de palavras, cuja interpretação, em alguns casos, importava em prejuízo para Portugal. Conclui que os negociadores portugueses – D. Domingos [representante português em Londres] e o irmão d. Rodrigo [Linhares] – não agiram só com ignorância, mas com o desejo manifesto de serem agradáveis à Inglaterra, traindo a nação e o príncipe. E quando o próprio d. João reconhece a impraticabilidade de certas cláusulas, que deviam ser revistas, Hipólito não perde a oportunidade de voltar ao assunto para reivindicar para si a glória de suas razões iniciais quando todo mundo batia palmas e agora reconhecidas precedentes’ [Cf. Correio Braziliense, vol. XXI, p. 113 e vol. XXV , p. 543, citado por Mecenas Dourado, Hipólito da Costa e o ‘Correio Brasiliense’, op. cit., tomo II, pp. 425-26].

A historiografia subseqüente seguirá Hipólito, sem registrar a paternidade. Varnhagen consignou que o negociador português ‘admitiu estipulações contrárias à dignidade nacional’ [Varnhagen, História Geral do Brasil, 3ª ed., t. 5, p. 135, citado por Roberto Macedo, Brasil sede da monarquia, Brasil Reino, 1ª parte, vol. 7 da História Administrativa do Brasil (sob a coordenação de Vicente Tapajós), 2ª ed., Brasília: Editora Universidade de Brasília/FUNCEP, 1983, p. 64]. Para Rocha Pombo, ‘não há dúvida que o tratado de comércio foi um erro de que se desaperceberam os conselheiros do Príncipe’ [Rocha Pombo, História do Brazil, Rio de Janeiro: Editoria Jackson, 1935, vol. IV, p. 310]. O mais famoso historiador do período joanino, Oliveira Lima, reconhece – no seu Dom João VI no Brasil – a dificuldade de se concluir, naquelas circunstâncias, um acordo eqüitativo, afirmando que o tratado de 1810 ‘foi franca e inequivocamente favorável à Grã-Bretanha’ [Cf. Oliveira Lima, Dom João VI no Brasil, 3ª ed., Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, pp. 246]. Contestando mais adiante, em sua obra sobre o Império, o princípio da ‘perfeita reciprocidade’ de tratamento, Lima considerou que a reciprocidade ‘deste regime de verdadeiro favor, pois que era exclusivo, não passava de ilusória’, uma vez que os gêneros brasileiros análogos aos produtos coloniais britânicos ‘eram aduaneiramente excluídos do mercado inglês’ [Cf. Oliveira Lima, O Império Brasileiro, 1822-1889, nova ed.; Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986, p. 173]. Isso era Hipólito, puro.

Segundo Pandiá Calógeras, que aponta o ‘triunfo diplomático e financeiro para as praças exportadoras da Grã-Bretanha’ e a ‘gravidade dos atos então subscritos’, ‘é inegável que [o tratado] foi um erro de política econômica’ [Cf. J. Pandiá Calógeras, A política exterior do Império, Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, Câmara dos Deputados, Companhia Editora Nacional, 1989, vol. I: As Origens, pp. 342 e 346; mas, ele reconhece que o tratado de comércio ‘foi vantajoso à população, que poude adquirir utilidades por preços mais baixos…’]. Roberto Simonsen é igualmente condenatório: ‘Não era essa, infelizmente, a política comercial que conviria a um país como o nosso, que apenas iniciava a sua economia independente. Tínhamos que abraçar, àquele tempo, política semelhante a que a nação norte-americana seguiu no período de sua formação econômica. Produtores de artigos coloniais, diante de um mundo fechado por ‘políticas coloniais’, tornamo-nos, no entanto, campeões de um liberalismo econômico na América’ [Cf. Simonsen, História Econômica do Brasil, São Paulo: Editora Nacional, 1937, p. 260].

V

Influência de Hipólito no debate econômico do século XIX

A despeito da pregação de Hipólito, o protecionismo tarifário e as políticas comerciais ‘substitutivas’, tais como praticados no Brasil do século XIX, foram, além de ineficazes na prática, essencialmente subprodutos involuntários das dificuldades estruturais do Tesouro, cujas necessidades fiscais levavam à própria taxação das exportações. O protecionismo tarifário, aplicado de maneira algo errática ao longo de quase meio século de Segundo Império, não conseguiu, de fato, desenvolver a indústria, nem satisfez inteiramente as necessidades da lavoura.

Desde a adoção da primeira pauta protecionista por Alves Branco, em 1844, o Brasil passou por várias reformas aduaneiras, a maior parte delas de cunho fiscal. As tarifas Alves Branco não subsistiram muito tempo, tendo sido alteradas já no período da conciliação (1857), pelo ministro da Fazenda João Maurício Wanderley (Cotegipe), alegadamente com vistas a defender os interesses da agricultura e dos consumidores de modo geral. Apenas no período ulterior a 1860, já refletindo preocupações da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, serão as tarifas elevadas para um nível médio de 50%. Na verdade, o objetivo protecionista era de certa forma secundário à necessidade de maiores receitas para o Estado.

O debate econômico começa a demonstrar o comprometimento de setores da opinião pública com a instalação de indústrias, como tinha pregado Hipólito desde 1808. Os argumentos utilizados eram semelhantes aos que, em conjuntura não muito distante, esgrimiu Hipólito e que, segundo o princípio da proteção à ‘indústria infante’, viria a preconizar o economista alemão Friedrich List, que tinha aperfeiçoado seu aprendizado econômico nos Estados Unidos.

VI

O legado de Hipólito: humanismo, patriotismo, tino econômico

Hipólito foi uma figura à qual se poderia chamar de ‘renascentista’, ou seja, um homem completo, versado nas mais diferentes formas de saber e empregando o conhecimento em prol do estabelecimento de políticas públicas racionais do ponto de vista do interesse nacional. Em seu ‘armazém literário’, ele ‘versou e debateu’, no dizer de Mecenas Dourado, ‘quase todos os problemas fundamentais que interessavam as necessidades e a cultura do seu tempo’ [Cf. Dourado, op. cit., tomo II, p. 583].

Hipólito ‘sempre manteve a convicção de que o estudo da economia política é indispensável ao homem público, e lastimava que a Universidade de Coimbra não possuísse, em seu currículo acadêmico, uma cadeira em que se ministrassem esses estudos’ [Idem, p. 587]. Ele tinha sido educado na escola mercantilista, como era o normal em sua época, mas ao passar à Inglaterra aderiu de forma quase natural às pregações de Adam Smith e à doutrina liberal. Mas, como vimos pela sua discussão do decreto de abertura dos portos e do tratado de 1810, sua noção era a de um liberalismo doutrinal corrigido pelo bom senso e por um extremado pragmatismo. Ele ostentava, sobretudo, uma compreensão muito clara de onde se situava o interesse nacional brasileiro, acima de quaisquer considerações teóricas ou doutrinais.

Como afirma por sua vez Rizzini, ‘O fim precípuo do Correio Braziliense era o de promover o progresso do Brasil, erguendo-o de colônia a nação’, ainda que nação portuguesa, unida a Portugal, sob o sistema monárquico-representantivo [Rizzini, p. 143]. A esse título, Hipólito era contra os privilégios e monopólios, preferindo o comércio livre ao administrado, defendendo certas isenções tributárias para estimular determinadas atividades fabris. Concordava em taxar moderadamente as importações estrangeiras, mas nunca de maneira exagerada, de molde a não estimular o contrabando. Mas ele também tinha plena consciência das desigualdades estruturais que poderiam colocar em confronto os interesses respectivos de dois países desigualmente dotados, como verificado no caso dos tratados ‘desiguais’ negociados pela potência inglesa com os países mais fracos, a começar por Portugal. Hipólito acreditava que, depois ‘da triste experiência com o Tratado de 1810, convinha ao Brasil regular o seu comércio sem novos compromissos, sem se atar em relação a um futuro ainda mal descortinado. Adotasse medidas mutáveis segundo seus interesses e as condições gerais das trocas’ [Idem, p. 181, que cita o CB, vol. XIII, dezembro de 1814, p. 782]. Na questão da mão-de-obra, o seu ‘armazém literário’ atribuía o formidável progresso dos Estados Unidos à importação favorecida de braços livres, o que propugnava igualmente para o Brasil, sem sucesso porém, uma vez que continuaram por décadas seguidas o tráfico e a escravidão.

Ao concluir sua obra de editor, no final de 1822, Hipólito escrevia no último número do Correio Braziliense uma espécie de legado intelectual do ponto de vista da economia política: ‘Quanto às relações comerciais com as demais nações, quer haja quer não a formalidade do reconhecimento [do novo Estado brasileiro independente], o governo do Brasil terá sempre o direito de prescrever aos estrangeiros que lá forem comerciar os regulamentos que bem lhe aprouver; e seguramente a prudência desses regulamentos eqüivale bem, quando não seja preferível, aos onerosos tratados de comércio, com que muitas vezes as nações ligam, sem o saberem, as mãos da indústria’ [Transcrito em Rizzini, op. cit., p. 309]. Palavras de prudência e de preocupação legítima com o progresso futuro da nação, como compete ao verdadeiro estadista que foi Hipólito, aliás sem nunca ter exercido cargo público no Brasil ou sequer ter voltado a por os pés, enquanto adulto, no país que tinha como seu. Em Hipólito, mesmo longe da pátria e impedido por força da censura de expressar livremente o seu pensamento, o exercício teórico e prático da economia política, guiado por uma certa idéia do interesse nacional, estava a serviço da construção da Nação.

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Doutor em Ciências Sociais, diplomata, pesquisador nas áreas de relações internacionais e política externa do Brasil, autor de Formação da Diplomacia Econômica no Brasil (2ª ed., São Paulo, Editora Senac, 2005); www.pralmeida.org