Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Preto no branco, 400 anos fazendo história

Chamava-se Relação de todas as histórias importantes dignas de serem lembradas (Relation aller fürnemmen und gedenckwürdigen Historien). Foi autorizada no verão de 1605, pela Câmara de Estrasburgo, Strasbourg ou Strasburg (antiga Alemanha, hoje França). O mundo aprendia a lembrar e nunca mais seria o mesmo.


Meses antes, janeiro de 1605, Miguel de Cervantes publicava na Espanha, o seu El ingenioso hidalgo Don Quijote de La Mancha. A humanidade aprendia a sonhar e também jamais seria a mesma.


Além da proximidade no tempo e no espaço não há relação direta, causal, entre as duas efemérides. Mas nos últimos 400 anos o quixotismo e o jornal andaram intimamente ligados. Graças a esta aliança, quimeras e ideais deixaram a esfera íntima. O idealismo assim compartilhado deixou o singular, cresceu, estendeu-se.


O comprido nome do periódico criado pelo desconhecido Johann Carolus contém a própria definição do ofício que a partir dele seria criado. Relação – do latim relatar, narrar, informar – abarca também os conceitos de vincular, comparar, examinar com atenção, entender. A importância de uma história só pode ser aquilatada a partir do momento em que é registrada. Então pode ser confrontada com outras e, sendo importante, merecerá ser lembrada.


Assim como Johann Gutenberg não inventou o livro (apenas aperfeiçoou um processo capaz de torná-lo mais acessível), Johann Carolus não inventou o jornalismo. Inventou o impresso periódico através do qual seria desenvolvida uma arte, ciência, ou arte-ciência destinada a registrar e relacionar os fatos dignos de serem lembrados. Não existe revistismo nem televisismo, mas a palavra jornalismo existe em quase todos os idiomas marcada indelevelmente pela raiz jornada, compromisso diário, contínuo, permanente. Mesmo quando composta (como em rádiojornalismo, telejornalismo ou infojornalismo) nunca deixa de ser jornalismo – a história instantânea.


Princípio ativo


Os quatro séculos de jornal passaram em brancas nuvens; só foram efetivamente comemorados na Alemanha, sobretudo em Mainz (Mogúncia), terra natal da tipografia, graças ao Museu Gutenberg, que inaugurou a mostra ‘Preto no Branco, um meio (medium) que mudou a história’.


Junto com o jornal institucionalizou-se o ódio ao jornal. E aos profissionais que nele encontram a sua razão de viver. Há escritores que detestam jornais e jornalistas, mas sem estes os livros não poderiam ser evocados, citados e revividos. A censura e a perseguição surgiram em seguida. Perderam todas as paradas mesmo quando os censores disfarçam-se em juízes.


O progresso tecnológico, ao invés debilitar o jornal, só o fortaleceu: prensas mais rápidas, tintas mais duráveis, papéis mais resistentes, fontes mais legíveis, gravuras mais fáceis de reproduzir, materiais mais flexíveis, sistemas de comunicação mais rápidos (do pombo-correio ao telégrafo) – nada impediu o desenvolvimento do jornal. Ao contrário, tudo o favorece.


O jornal foi condenado à morte quando surgiu o rádio, quando se popularizou a TV e agora, quando a informática e a internet, trazem a comunicação para o tempo real. Os densos e variados semanários e mensários do fim do século 18, assim como as multicoloridas revistas do século 20, não conseguiram liquidar o jornal.


Só o fortaleceram. O jornal-relação introduzido em 1605 é imbatível: absorve e serve-se dos aportes dos concorrentes, permanentemente enriquecido e reinventado.


O que hoje se chama de mídia (do latim media) é o conjunto de variações bem ou mal-sucedidas da quadricentenária Relação de todas as histórias importantes, dignas de serem lembradas. Imprensa é genérico. Jornal é o princípio ativo.