Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Quando os jornais saíam da tipografia

Descuidos e erros de revisão nos jornais, quando eram feitos nas oficinas ou tipografias, provocaram em certos momentos situações engraçadas, e em outros, constrangedoras. Bastava a inclusão ou exclusão de uma letra, uma palavra, para tirar do sério o autor do texto e a direção da empresa. A culpa recaía na pessoa responsável pela leitura e correção com base nos originais. Os textos de alguns figurões, ainda que com determinados erros, eram intocáveis.

Pela ignorância dos outros, muitos pagaram caro. Por conta do ‘errar é humano’, houve casos antológicos que fizeram rir o leitor e aborrecer o jornal. Luiz Beltrão, no livro A imprensa informativa, conta alguns incidentes que criaram embaraços.

Um deles: o jornalista Mário Melo mandava crônicas manuscritas para o Jornal do Commercio (Recife-PE) com uma caligrafia que se tornou o terror do linotipista e do revisor. Numa das ‘Crônicas da cidade’, irritado com o erro grosseiro que saiu, escreveu abaixo do próximo texto:

‘Outro dia referindo-me a mim e ao saudoso dr. Fausto de Morais Pinheiro, escrevia: ‘partíamos’. O linotipista comeu o ‘t’ e ficamos, eu e o defunto, a exercer função fisiológica impossível ao nosso sexo.’

Falo com experiência a propósito do assunto. Fui por algum tempo revisor nos Diários Associados, em São Luís (MA), início da década de 60. Pela manhã, cedo, o diretor Pires de Sabóia, antes de sair de casa lia os jornais O Imparcial e O Globo e detectava os erros. Ao chegar à empresa chamava os revisores para uma ‘conversinha’. Subíamos até o primeiro andar e tome reclamações. Eu e o Bandeira (a revisão fazia-se em dupla) ouvíamos calados. Não queríamos transferir a responsabilidade para o linotipista e o paginador, que em certos momentos, não cumpriam as tarefas. Quando o artigo era de autoria de Assis Chateaubriand, o dono da ‘cadeia associada’, as coisas se complicavam.

No tempo do ‘boneco’

No caso do autor de textos assinados, é regra e ético, que não se devem mexer nos originais, a não ser que, o ‘descuido’ ou o erro de gramática seja acintoso e elementar. Nas polêmicas, quando havia grandes polêmicas, as explicações não convenciam. As eventuais ‘negligências’ tinham a paternidade negada. Na resposta ao adversário quem se anunciava como culpado? A revisão. Ficava por isso mesmo.

Esta quarta-feira, 28 de março, é o dia dedicado a duas funções ligadas ao jornal – o revisor, que teve o seu tempo áureo antes da era da informática, e o diagramador. Continuam sendo mão de obra indispensável, mas com um outro viés. O revisor dos nossos dias é o computador. Na época em que o jornal tinha respeito pelos leitores, quem fazia a revisão era um Quintino Bocaiúva, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Aurélio Buarque de Holanda e muitos outros do mesmo nível cultural. Procedimento igual acontecia com a diagramação, no jargão jornalístico conhecido como ‘boneco’. Antes se diagramava sem cálculo e técnica, com lápis e papel, e intuitivamente.

Lição de jornalismo

Vejamos uma outra situação contada por Eça de Queiroz, em ‘Uma campanha alegre’ que provocou riso – não apenas do leitor, como do revisor. Desta vez ninguém podia acusá-lo pelas palavras incluídas numa notícia, que variavam de jornal para jornal, quando da estada de D. Pedro II, em Lisboa, que na oportunidade aproveitou para se encontrar com o famoso escritor Alexandre Herculano.

Esclareceu Eça: ‘Sua Majestade Imperial visitou o Sr. Alexandre Herculano. O fato em si é inteiramente incontestável. Todos sobre ele estão acordes, e a História, tranqüila. No que porém as opiniões radicalmente divergem é acerca do lugar em que se realizou a visita do Imperador brasileiro ao historiador português’ – e conclui, relacionando as disparidades dos jornais:

‘O Diário de Notícias diz que o imperador foi à mansão do Sr. Herculano. O Diário Popular, ao contrário, afirma que o Imperador foi ao retiro do homem eminente, que… o Sr. Silva Túlio, porém, declara que o Imperador foi ao tugúrio de Herculano (ainda esteve realmente na tebaida do ilustre historiador que…). Uma correspondência para o Jornal do Porto afirma que o Imperante foi ao aprisco do grande… etc… Outra vem todavia que sustenta que o Imperador foi ao abrigo desse que… Alguns jornais de Lisboa, por seu turno, insinuam que Sua Majestade foi ao albergue daquele que… Outros contudo sustentam que Sua Majestade foi à solidão do eminente vulgo que… E um último mantém que o Imperador foi ao exílio do venerando que…’

Ressalta Eça:

‘Ora, no meio disto, uma coisa terrível se nos afigura: é que Sua Majestade se esqueceu de ir simplesmente à casa do Sr. Herculano!’.

Desta vez a culpa não foi do revisor. Bela lição de jornalismo.

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Professor universitário (UFMA) e jornalista