Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Um episódio de desatenção da imprensa

Há pouco várias pessoas, atos, ações e filmes, de maneira mais do que acertada e obrigatória mesmo, chamaram a atenção dos que souberam dos fatos à época – e dos mais novos, que talvez até os desconhecessem – quanto à morte de Vladimir Herzog, há trinta anos. O Observatório da Imprensa e Alberto Dines também estiveram no centro dessa recordação, como muito mais se fez. Na ocasião, eu era estudante universitário e os acontecimentos muito me marcaram. Em especial a celebração ecumênica na catedral da Sé, comandada por D. Paulo Evaristo Arns, o rabino Henry I. Sobel e o pastor James Wright.

Lembro-me dos comentários de que o general Geisel esteve secretamente em São Paulo no dia, da perda de controle dos então defensores da famosa abertura lenta e gradual para os linha-dura, da ridícula foto da encenação do suicídio no DOI-CODI e assim por diante.

Com censura e tudo, a imprensa fez o diabo para passar as informações ao público, e esse é um dos momentos gloriosos da história da recuperação das liberdades democráticas, do Estado de Direito, do fim da tortura, da liberdade de expressão – mas congelemos as coisas no tempo.

É claro que não se podem comparar as gravíssimas violações a todos os tipos de direito do caso Herzog com o que vou relatar – mas é também uma data: há dez anos, mais exatamente no réveillon, de 31 de dezembro a 1º de janeiro de 1995 para 1996, foi instituído manu militari o Programa de Atendimento à Saúde (PAS), inicialmente na região de Pirituba e Perus, pelo então prefeito de São Paulo, Paulo Salim Maluf.

Serei obrigado a contar um pouco do que foi esse tal de PAS (intervalo: como essa sigla é usada para quase tudo, até mesmo na campanha eleitoral para a Associação Paulista de Medicina (APM), à época, concorriam à presidência os médicos Celso Guerra e Eleuzes Paiva, e o slogan da campanha deste último foi ‘Nem paz, nem guerra, Eleuzes na APM’ – e não havia marqueteiros…). Isso é necessário, pois vou contar um episódio em especial que guarda relações interessantíssimas como o ato ecumênico da Sé em memória de Vlado, e o tratamento que a imprensa, já sem censura, deu ao assunto. Vamos em frente.

Dois parágrafos

Em relação ao caso Herzog, nada que eu puder escrever vai acrescentar algo a tudo que foi escrito, filmado e documentado, e os diferenciados leitores do Observatório não necessitam perder tempo com mais um relato.

E o tal do PAS?A cidade de São Paulo é um caso especial: o único município do estado de São Paulo a não possuir a gestão plena do Sistema Único de Saúde (SUS) – razões políticas e financeiras não deixaram o processo de municipalização completa seguir adiante, desde 1988, com todos os alcaides do período. Por outro lado, São Paulo tem uma situação especial: a Secretaria Municipal da Saúde mantém uma grande rede de hospitais próprios, vários terciários, e postos de saúde. Os hospitais federais passaram para o governo do estado e não do município, mas o estado repassou à prefeitura suas unidades básicas de saúde – os postos, enfim.

Devo também fazer um relato pessoal: fui eleito para o corpo de conselheiros do Conselho Regional de Medicina (CRM) do Estado de São Paulo, de 1993 a 1998, e de 1995 a 1997 eu era o diretor primeiro-secretário da entidade.

As coisas na área de saúde da prefeitura andavam mais ou menos como sempre, até que no início de 1995 o prefeito Maluf recebeu o pedido de exoneração do então secretário da Saúde Silvano Raia, e em seguida nomeou para o cargo o sociólogo Gilberto Hanashiro, que já havia sido secretário dos Transportes e lembrado como quem desmontou a Companhia Municipal de Transportes Coletivos (CMTC). Em tempo: nada contra não-médicos à frente de secretarias e ministérios da Saúde: é legal e alguns muito hábeis podem mesmo desempenhar adequadamente a função. Na cerimônia de posse, um aviso: grandes mudanças ocorreriam na área da saúde, pois seria toda ela mantida por cooperativas por meio de um sistema chamado PAS, que o recém-empossado secretário segurava em forma de brochura com um grande logotipo à frente. Mas, afinal, o que seria o PAS? Ninguém naquele momento tinha a mínima idéia.

Maluf tentou aprovar um decreto com apenas dois parágrafos (!), mas a oposição na Câmara Municipal conseguiu que a Justiça proibisse esse arbítrio, obrigando a ser convertida a questão em projeto de lei, com todo o ritual de passagem pelas comissões da casa, audiências públicas, votação em plenário etc. Isso durou oito meses, e como o prefeito tinha maioria na casa, o mesmíssimo projeto de dois parágrafos foi aprovado e sancionado em seguida.

Malsinado plano

Durante o ano de 1995, devido ao fato de o projeto estar na Câmara, o CRM, demais entidades da classe médica e de outros profissionais da saúde, representantes da sociedade e de movimentos populares, OAB etc., reuniram-se seguidamente e conseguimos acumular uma boa massa crítica condenando o dito PAS. Deve-se ressaltar que assim que Hanashiro tomou posse, foi convidado a comparecer a uma sessão plenária do CRM para explicar o que era o PAS: ele veio, fez um discurso, respondeu às perguntas dos presentes e não esclareceu nada. E o CRM foi à primeira entidade a publicar nota oficial na imprensa condenando o PAS como possível privatização da saúde pública, a menos que a prefeitura municipal mostrasse o contrário.

Claro que isso não ocorreu, e como Maluf tinha pressa em ter o PAS funcionando, tendo sido escolhida para inaugurá-lo a região de Perus-Pirituba, Getúlio Hanashiro ao que parece estava sendo lento demais para os propósitos do prefeito, que o substituiu no final do ano por Roberto Richter, aliado fiel, que passou acumular a pasta de Planejamento com a da Saúde.

Então, espantosamente, no pior dia possível para se mudar qualquer coisa – o reveillon – o Hospital Municipal de Pirituba passou, literalmente da noite para o dia, do tradicional sistema de gestão pública para a cooperativa do PAS. Como estávamos atentos, eu e mais dois colegas conselheiros, dois médicos fiscais, um advogado e o fotógrafo, todos do CRM, ficamos antes da meia-noite e depois, para ver o que ocorreria com a Cinderela. E o que houve é que os médicos da prefeitura saíram, ficando apenas um do PAS, um cirurgião .E logo começaram a chegar casos graves, e o desesperado colega não conseguia encontrar um superior sequer para mandar alguém para ajudá-lo naquelas circunstâncias. Fez inclusive um boletim de ocorrência para preservação de direitos na delegacia da região, e apenas no final da manhã do dia 1º de janeiro de 1996 começaram a chegar outros médicos, incluindo o coordenador-geral do PAS. Mas ocorreram mortes, e um inquérito policial chegou a ser aberto a respeito.

Foi o começo de uma longa série de confusões, que fogem ao escopo do que aqui pretende ser dito: o PAS foi condenado pelo Tribunal de Justiça, ocorreram ações não apenas do CRM, mas também Ministérios Públicos Estadual e Federal. Renomados juristas, como Dalmo Dallari, e mesmo reconhecidos professores universitários, até mesmo ex-colaboradores de Maluf, condenaram o plano em alto e bom som. Mas em poucos meses a cidade inteira estava com os próprios da saúde repassados da prefeitura para as tais cooperativas, sem licitação, com grosseiras irregularidades. E o malsinado plano só acabou mesmo após o fim da não menos recordável gestão Celso Pitta.

Feliz coincidência

Um detalhe interessante é que o CRM é uma autarquia federal com dever-poder de polícia, assim como outros conselhos e ordens das profissões regulamentadas. Não se pode proibir a fiscalização do CRM em unidades onde atuem médicos. E pela primeira vez na história dos conselhos em todo o Brasil, desde 1957, em geral nenhuma unidade do PAS deixava o CRM entrar: criou-se, então, um mecanismo aloprado, pois com a negativa entrávamos com pedido de liminar na Justiça e voltávamos por vezes até mesmo com oficiais de justiça e a polícia, para fazer a dita vistoria (que não pode ser com hora marcada, por motivos lógicos), e encontrávamos uma série de absurdos, devidamente documentados. Abriram-se vários processos disciplinares contra médicos do PAS no CRM, além de ações conjuntas com os MPs.

Pois bem: durante quase dois anos ocorriam concorridas e lotadas assembléias semanais, abertas a todos, na sede do CRM ou da APM. Foi um período rico de experiências. Em dado momento, alguém sugeriu que conversássemos com D. Paulo Evaristo Arns, pedindo o apoio da Igreja. Ele nos recebeu amavelmente, concordou com tudo o que dizíamos e indicou uma pessoa de sua confiança, o então vigário da comunicação, padre Francisco Altmeyer, para participar de nossas reuniões e assembléias.

E eis que veio uma idéia, por proposta de um participante de uma das assembléias: por que não fazer um ato ecumênico contra o PAS? Acertadamente, o padre Altmeyer disse que não se fazia ato ecumênico ‘contra’ alguma coisa, e propôs que se fizesse um ato a favor da saúde, quando se criticaria o PAS. E o mesmo foi organizado e realizado.

O formato foi diferente daquele de Herzog: o ato teve lugar na igreja de Santa Ifigênia, num final de tarde. Após a celebração, os presentes sairiam em passeata, com velas na mão, até o mosteiro de São Bento, quando seria encerrada a manifestação.

Por razões de saúde D. Paulo não pode comparecer, mas indicou para seu lugar Frei Betto. Eu mesmo convidei e levei para o local o rabino Sobel. Descobri que o pastor Wright estava morando no Paraná, conversei com ele, mas tristemente fui informado de que estava em graves condições de saúde: mesmo assim quis informações sobre a questão, e indicou outro pastor de São Paulo para ficar em seu lugar. Ainda mais: não apenas essas três denominações religiosas estavam presentes, mas também pastores metodistas, presbiterianos, sacerdotes budistas e representantes de religiões afro-brasileiras.

Por uma feliz coincidência, estavam em visita a São Paulo naquela data as Mães da Plaza de Mayo, da Argentina, lideradas por Hebe Bonafini. Convidadas, elas foram à igreja de Santa Ifigênia.

Testemunhas vivas

A igreja estava lotada: falaram apenas Frei Betto, o rabino Sobel e Hebe Bonafini, que em emocionado discurso fez a defesa da saúde pública de qualidade. E aí, para surpresa dos transeuntes que saíam do trabalho naquele final de tarde e dos camelôs do viaduto do Chá, uma procissão enorme e silenciosa, com velas na mão, foi até o mosteiro de São Bento, tendo à frente os religiosos e as figuras inolvidáveis das mães argentinas, com seus famosos lenços brancos.

Como relatei, a situação não podia ser comparada aos fatos da década de 1970, mas a defesa da saúde foi feita com um ato importantíssimo, com figuras de destaque, incluindo numerosas entidades e organizações, além das argentinas. Efeito prático não houve, como seria de se esperar, mas o regime de então era plenamente democrático, com liberdade de imprensa e, ao menos na minha visão, esse ato tinha um interesse jornalístico respeitável.

Na véspera e no dia do ato ecumênico, as assessorias de imprensa e comunicação de todas as entidades envolvidas enviaram releases e jornalistas telefonaram para comunicar o que aconteceria.

Pois bem, leitor que teve a paciência de chegar até aqui: nada saiu publicado em qualquer jornal ou revista, tampouco noticiado em rádio ou televisão. O ato por Herzog na catedral da Sé conseguiu vencer a censura, mas para esse revival ninguém deu bola.

Devo reconhecer que o prefeito Maluf jogou pesado: comprou (segundo ele com dinheiro do próprio bolso) horário nobre em todas as redes de televisão para defender o PAS e atacar principalmente o CRM, que acusava de ser ‘nazista’. Conseguiu até mesmo um Globo Repórter especial, para um debate entre o secretário da Saúde e o presidente do CRM, que foi um engodo só.

A imprensa ficava em cima do muro, porém dava notícias. Mas o citado ato ecumênico ficou apenas na memória dos que dele participaram. Daí vem a pergunta: como? Por quê? Não estava acontecendo nenhum fato dramático naqueles dias para ocupar os espaços de jornais e TVs, e continuo a crer que o interesse jornalístico, ao menos, deveria ser razoável, no mínimo pela curiosidade, pela coincidência, pelas pessoas presentes e até mesmo por Hebe Bonafini e suas companheiras. Mas nada apareceu em lugar algum.

Não, não estou alucinando: há várias testemunhas, felizmente todas vivas, que participaram daquela manifestação. Mas pergunto a quem quiser colaborar em elucidar essa dúvida: duas efemérides, com um grau de semelhança respeitável, ambas em defesa de boas causas – por que razão em 1996 a imprensa a se calou?

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Médico