Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Flores sobre a memória de um raro talento musical

O documentário exibido sexta-feira (8/2) pela TV Brasil, sobre a vida e trajetória do cantor brasileiro Wilson Simonal, mostrou a face mortal da intolerância, do despreparo, da arrogância, do autoritarismo e do infantilismo dominantes na mídia brasileira nas décadas de 1950 e 60.

Desinformado sobre a política brasileira, que viveu sua efervescência nas duas décadas, o cantor, num determinado momento da década de 60, antes da decretação do famigerado AI-5 em 1969, pela Junta Militar que institucionalizou a ditadura, andou declarando sua simpatia aos donos do poder, tema suficiente para, a partir de então, ser considerado pela mídia e militantes políticos como sendo um agente do regime infiltrado na área musical.

Essa posição de Simonal foi a gota d’água para o ingresso do seu nome no index permanente dos censurados – não pela censura do regime, mas pela mídia e todos os seus fãs, uma camada popular ingênua que, às multidões, entoava as músicas dele, num processo simbiótico e interativo como jamais ocorrera na cultura brasileira. Em popularidade, Simonal rivalizava com Roberto Carlos.

Em que contexto político interno desabrochava Simonal como compositor e cantor? Embora não haja estudos sérios vinculando as ações da mídia brasileira ao macarthismo – movimento político anticomunista desencadeado e liderado entre 1948 e 1956 pelo senador republicano Joseph McCarthy –, o clima e o ambiente político predominantes na imprensa brasileira no período foram propícios a uma espécie de esquizofrenia em relação a Wilson Simonal: a esquerda o queimava, alardeando que ele era um agente infiltrado (antes da carreira ele fora cabo do Exército); atendendo a um requerimento desesperado dele, órgãos da repressão responderam com um ofício, dizendo que ele não fazia parte de nenhum setor do regime.

Homens da caverna

Pelo sim, pelo não, o que fez a mídia brasileira? Aliados aos próprios produtores musicais, as gravadoras e os numerosos núcleos de fãs o isolaram impiedosamente. Isso teve uma consequência imediata: ele deixou de vender discos, ganhar dinheiro com seus shows, desapareceu da mídia e passou a ser controlado pelo alcoolismo. Acabou morrendo com uma cirrose hepática e sepultado como mendigo.

Quarenta e dois anos depois da turbulência sobre as dúvidas espalhadas sobre a identidade política de Simonal e 13 anos após sua morte, os depoimentos frios de Nelson Mota e Chico Anísio, emocionados de Toni Tornado, e equilibrados de Luis Carlos Miéle e José Bonifácio (Boni) contribuem para o resgate da memória de Wilson Simonal mas ainda são insuficientes para repor a verdade real sobre a autenticidade da verve poética de um gênio desperdiçado da música popular brasileira.

Não se deve exigir que as pessoas pensem, ajam e tomem atitudes com alcance bem além do seu tempo. Mas é obrigatório dizer aqui que todas as personalidades citadas acima, nesse documentário, pareciam homens da caverna: ou estavam dominados pelo clima político da época ou se comportavam como verdadeiros brucutus. Hoje todos (menos o falecido Chico Anysio) devem se sentir culpados pela morte prematura de Wilson Simonal.

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[Reinaldo Cabral é jornalista e escritor]