Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A morte de um livreiro inovador

Nem todos os milhares de visitantes da avenida Miguel Angel de Quevedo, no bairro colonial de Coyoacán, ao sul da Cidade do México, sabem ou sentem. Mas o pedaço, um agitado corredor cultural – seis livrarias, três sebos, cafés e restaurantes, teatros – anda meio desolado, pois perdeu um de seus mais famosos e queridos integrantes, o livreiro Mauricio Achar, fundador e dono da mais importante rede de livrarias da capital mexicana, a Gandhi – as duas principais, a pioneira e a mais nova (dois andares, 2 mil metros quadrados), localizadas na avenida, uma em frente a outra.

Aos 67 anos, ‘el gordo Achar’, como era conhecido por escritores amigos e clientes amantes do livro, com duas pontes de safena e nem por isso menos ativo e cheio de entusiasmo, morreu de um enfarte.

Até o último dia de vida manteve seus hábitos: um deles o de almoçar em seu escritório na casa matriz e, depois, jogar xadrez com amigos ou dar uma voltinha pelos arredores, observando o movimento das livrarias – as suas e as da concorrência vizinha. ‘O fundamental não é durar, mas viver’, costumava responder quando alguém o advertia sobre seus eventuais excessos à mesa, pouco prudentes para um safenado veterano.

Inquieto e empreendedor, ele revolucionou a área da venda e promoção do livro no México. Um de seus projetos mais acalentados, para o qual não lhe sobrou tempo, era o de levar seu conceito de livraria – um centro de ampla e alegre atividade cultural – aos Estados Unidos, de olho na população latina. No México, além das oito livrarias na capital, a Gandhi tem uma filial em Monterrey e outra em Guadalajara.

Auxiliado por dois filhos, Achar desenvolveu seu negócio nos últimos 33 anos, com crescente sucesso nos últimos 10, e converteu-se numa influência fundamental para a criação de uma cultura livresca na cidade. Montou um espaço privilegiado juntando, sem nenhum formalismo, a venda de livros, café, discos e vídeos, além de uma galeria de artes plásticas e fotografia, encenações teatrais e musicais, e noites de autógrafos.

Como dizia Achar, insinuando seu faro comercial, ‘o importante é juntar aqui, por meio dos livros, a maior quantidade de gente possível, interessada também em outros aspectos da cultura’.

Leitor voraz, mas sem nenhuma pretensão intelectual, só querendo exercer uma atividade ‘mais divertida’, rodeado de livros (era então gerente de uma fábrica de pinturas e ator de teatro desde a adolescência), em 1971 ele abriu com a mulher a primeira Gandhi – com 120 metros quadrados, na mesma avenida Miguel Angel de Quevedo, numa época em que a região era considerada ‘muito longe’ e as livrarias da capital mexicana se concentravam no chamado Centro Histórico, onde ainda resistem algumas delas – antigas, acanhadas e dedicadas exclusivamente a vender livros.

Ler não precisa ser chato

A idéia de ler um livro e ao mesmo tempo tomar um café expresso, que ele viu em algum lugar na cidade, ainda de forma incipiente, pareceu então muito boa a Achar. O conceito foi aprimorado aos dispor os livros em mesas, mesinhas e estantes espalhadas por todos os cantos da livraria, permitindo ao freguês folhear com calma os volumes, em pé ou sentado, sorvendo seu cafezinho, sem ser importunado por vendedores insistentes. No começo era tudo um pouco atravancado, mas hoje os espaços são maiores, mais bem iluminados e ventilados.

A Gandhi foi a primeira livraria na cidade a conceder descontos aos clientes (e, nesse processo, a também reformular as relações livreiros-editores), a primeira a exibir livros de arte em pilhas, fora das vitrinas, para que o cliente pudesse folheá-los à vontade. Em seu estilo pouco convencional, Achar inovou também na área publicitária anunciando em jornais e revistas, em textos criativos e bem ilustrados, os livros à venda e os eventos realizados na livraria.

Depois da experiência bem-sucedida do esquema inicial café-livro, ele fez da livraria um lugar aberto a outros campos da cultura, como a música e as artes plásticas. No campo musical, por exemplo, apresentou no México algumas estrelas da música de protesto dos anos 1970, como os cubanos Pablo Milanés e Sílvio Rodríguez , a chilena Violeta Parra e a peruana Tania Libertad.

Numa entrevista ao El Angel, suplemento cultural do jornal Reforma, Achar fazia, há um ano, um resumo de suas idéias sobre o sucesso da Gandhi com base na complexa mistura de cultura e negócio:

‘Seja quem for o livreiro, dedicado a vender livros, tem que fazer isso por amor. Porque se o fizer só por negócios, deixa de ser negócio, quebra. Mais: as livrarias não têm porque ser solenes, não temos que associá-las a coisas monótonas, chatas’.

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Jornalista e escritor brasileiro radicado na Cidade do México