Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Eu adorava Barbara Heliodora

Eu adorava Barbara Heliodora, crítica teatral e acadêmica que morreu hoje no Rio aos 91 anos.

Barbara Heliodora era a maior crítica ou piadista do jornalismo cultural brasileiro?

Muitos a levavam a sério. Artista é muito inseguro, sensível. Sua crítica deprimia o atingido: sarcástica, inventava apelidos, fazia comparações esdrúxulas, ironias pesadas.

Outro problema é que o público carioca a levava muito a sério: seus textos no Segundo Caderno do Globo podiam alavancar ou destruir a carreira de uma peça de teatro, uma produção cara e estafante, desempregar uma galera, dar um prejuízo do cão.

E ela sempre surpreendia: podia amar uma comédia tola ou detonar um espetáculo sofisticado, delicado, brilhante.

Foi quem fez da comédia CÓCEGAS um fenômeno teatral, quando a viu no palco do teatro de cem lugares de uma faculdade.

Podia-se esperar de tudo, menos obviedades. Implicava com alguns diretores, amava outros, sem explicação.

Muitos a odiavam, a expulsavam do teatro, a detratavam publicamente.

Sempre a tratei com deferência e gentileza, como se trata uma idosa culta, solitária, odiada.

A minha primeira peça que estreou no Rio, E AÍ, COMEU?, ela nem foi ver. Deve ter detestado o título ou não botava fé no meu novo empreendimento, o teatro. Ganhei o Prêmio Shell de melhor autor com ela. Depois disso, ela não perdia uma peça minha, para desespero das produções.

Viu MAIS-QUE-IMPERFEITO. Me detonou de um jeito, que se eu fosse frágil, inseguro, largaria tudo e compraria um táxi. Viu CLOSET SHOW. Detonou. Encurtou a carreira dela.

Viu NO RETROVISOR. Amou. E exaltou de um jeito… Colocou na capa do jornal, me chamou de gênio e o escambau, que juro que achei over. Na primeira frase da crítica, escreveu: “Temos um autor!!!” Com três exclamações, como uma adolescente encantada escrevendo no diário.

A minha peça seguinte, AMO-TE, esculhambou. Estragou com a carreira dela.

Já com a minha peça A NOITE MAIS FRIA DO ANO ela foi gentil. Sem se tocar que já tinha visto. Era AMO-TE com outros atores, outra direção, e a inclusão de um prólogo, outra cena; e eu não avisei. Ela viu o mesmo texto duas vezes, não reconheceu, fez duas críticas completamente diferentes. Ah, te peguei, Dona Barbara!

Quando a via chegando na estreia, e ela sempre aparecia na estreia, em que tudo pode acontecer, o espetáculo não está pronto, é imaturo, na plateia, familiares e amigos condescendentes, eu a recebia com deferência, beijava a sua mão e dizia: “Que honra…”

E era uma honra mesmo.

Ela sorria, respondia: “Achou que eu ia perder?” E corria para se sentar.

No fundo, era uma velhinha tímida. Era a primeira a ir embora, geralmente de táxi, quase sempre sozinha, sem expressar se gostou ou não. Só dois dias depois saberíamos. Algumas, jurei que tinha gostado. Tinha detestado. De outras, que saíra indiferente e com pressa. Tinha amado.

Eu particularmente não gostava da sua leitura (traduções) de Shakespeare. Ela respeitava a métrica, obcecada por encaixá-la com nosso português martelado, sobre um inglês meloso. Sempre preferi o jeitão do Millôr Fernandes, que se concentrava na dramaturgia, não na sonoridade ou nas rimas.

Mas, por vezes, lia a tradução de ambos e via na delas alguns achados incríveis.

Quando se aposentou, senti um vazio. Vou sentir falta de Barbara Heliodora. Ela me divertia.

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Marcelo Rubens Paiva é escritor e dramaturgo