Wednesday, 09 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

João Gilberto entre ecos e ruídos

João Gilberto morreu neste sábado (6), no Rio de Janeiro. (Foto: Senado/Divulgação)

Há dois anos, surgiu um personagem novo na imprensa brasileira. Um sujeito de 86 anos, esquálido, de olhar perdido, ilustrava matérias de destino quase policial, onde se lia que seu apartamento havia sido arrombado e o morador, levado à força pelos enfermeiros. Não, pelos policiais. Não, acabou ficando quando os invasores entenderam que o morador sofria de fragilidade física e mental. João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, informa outra matéria, que morava de favor, foi despejado e levado por amigos do Leblon para a Gávea, tinha dívidas homéricas, medo do palco, não comparecia aos shows.

Esse sujeito mais que estranho, lia-se, tinha voz pequena, consta que desafinava, não saía de casa, não abria a porta nem para a comida encomendada ao telefone – em nome de sr. Oliveira – do Degrau ou do Antiquarius, deixada todo dia à sua porta. Acordava às 17h, almoçava às 23h. E foi impedido de assinar contratos, interditado judicialmente por uma filha que se tornou sua tutora. Virou alvo de disputa pelos herdeiros interessados em quinhões inteiros ou parciais de seu espólio. Ou seja, direitos autorais.

Esse sujeito só foi descoberto pela geração que nasceu há vinte anos no dia 6 de junho, sábado, dia mais frio em muitos anos, pelas rádios, TVs e internet, e no dia 7, quando O Globo escancarou meia capa colorida com um João Gilberto sorridente, o violão e o título O apagar da velha chama—um dos maiores gênio da música brasileira, criador da bossa nova, influenciou gerações de artistas com sua “batida diferente”. Os leitores jovens também assimilaram em preto e branco a foto de capa do Estadão, Um banquinho, um violão, uma saudade. E, só para ficar nos jornalões, a foto de 1999 na capa da Folha, João com língua esticada para a plateia que o vaiava quando ele interrompeu o show no Credicard Hall, desabafando “nunca mais piso aqui.” Segundo o músico, os ecos atrapalhavam suas pausas. Pôs a língua de fora e deu o troco: “vaia de bêbado não vale”.

Na mídia, visual, eletrônica e nas rádios, um show de João Gilberto com completo controle de seu violão e suas, graças a Deus, esquisitices. Tem direito a qualquer excentricidade um gênio que só acontece de 100 em 100 anos, às quais obedecem seus pupilos musicais, que somos todos nós – mas também Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Eric Clapton, Bob Dylan, Miles Davis, Diana Krall, Ella Fitzgerald, Gal Costa, Jards Macalé, Roberto Carlos, Dori Caymmi, Marcos Valle, Baden Powell, Nara Leão, Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli… “Ele tinha o direito de não querer ver ninguém. Eu colocava debaixo da sua porta os LPs do Orlando Silva que ele me pedia e ia embora”, diz um dos maiores pesquisadores da MPB, Ricardo Cravo Albin. Almir Chediak, chamado para afinar seu violão, correu para o prédio feliz em poder ver pessoalmente seu ídolo, mas encontrou o violão na portaria. E, quando foi devolver, João pediu, pelo outro lado, que ele deixasse o violão na porta, que foi retirado por uma fresta por onde só passava a mão do dono e o violão.

Quanto aos shows interrompidos, João ouvia reverberações harmônicas que ninguém mais percebia, era um minimalista que tocava a música em sua essência, tocava o silêncio. Foi assim que Caetano Veloso definiu João Gilberto: “melhor do que o silêncio, só João”. Com seu ouvido absoluto e a mão direita que usava como tamborim, João revolucionou a MPB ao tocar samba com influência de cool jazz, criando uma nova batida de violão, a melodia repetida infinitamente. Repetia tanto que uma das muitas lendas que cercam João diz que, de tanto ouvir O pato, seu gato se suicidou.

Em 10 de julho de 1958, quando gravou Chega de Saudade, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, João Gilberto dividiu a MPB em antes e depois. “Tinha 1 minuto e 59 segundos, mas dividiu a música brasileira em dois tempos e continua, sessenta anos depois”, diz Ruy Castro, que nunca se cansou de pedir: “Deus livre João Gilberto de ver estranhos batendo à sua porta tentando ajudá-lo, deixem o João em paz.”

Era leve, elegante, zen, poeta. Não ocupava espaço. Não se preocupava com a vida que corria fora do seu apartamento. Num caso contado pelo filho João Marcelo, Ronaldo Bôscoli deu falta de camisa rosa que virou moda depois que Sinatra elegeu a cor (muito antes de Damares virar ministra) e só João estava por perto quando a dita sumiu. Bôscoli só confirmou a suspeita quando viu a capa de um LP de João com a camisa rosa que ele nunca devolveu. No documentário Onde está você, João Gilberto?, de Georges Gachot, o músico Roberto Menescal conta que ofereceu uma camisa para a foto de capa de outro disco de João. Na dúvida, João levou várias, que também nunca devolveu.

Assisti a alguns shows interrompidos onde nem se escutava o zum zum de moscas – mas, para ele, era demais. E fui cobrir um festival Braziliana na Dinamarca, numa Copenhague enfeitada de cartazes com fotos gigantes da grande atração, João Gilberto – que não apareceu. Era o João Gilberto, ora. Se até Fernando Pessoa deu um bolo em Cecília Meirelles, que ficou plantada n’A Brasileira do Chiado? A diferença é que Pessoa justificou com um bilhetinho deixado no hotel de Fernanda: seu horóscopo dizia que não seria um bom dia para o encontro.
João alegava dor de garganta ou, simplesmente, nada. E continuava sendo convidado do mesmo jeito.

No festival de horrores que o cercaram nos últimos anos de vida, noticiados pela mídia, soube-se que João sofria de hérnia, morria de dores, tinha de tomar remédios que falhavam e se recusava a pôr os pés num hospital.

João Gilberto não merecia terminar a vida entre o embate violento dos dois filhos, Bebel, 53 anos, filha de Miúcha, e João Marcelo, 59, filho de Astrud. Os dois moram nos Estados Unidos. Bebel abriu dois processos contra o irmão por injúria e difamação;João Marcelo afirmava que Bebel era alcoólatra e viciada em drogas e que não tinha condição de cuidar do pai. O motivo: Bebel interditou o pai e ganhou a curatela disputada por João Marcelo.

Se João Gilberto estivesse vivo, poderia sair do buraco de um endividamento progressivo quando recebesse os 100 milhões de reais da EMI (Universal) no processo que movia contra a gravadora. Quis o destino que, há dois meses, a 9ª Câmara do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro lhe desse ganho de causa, decisão confirmada em segunda instância – mas cabe recurso.

João morreu em meio a uma barulheira que seus ouvidos jamais aguentariam, disputas de irmã contra irmão, de irmãos contra a ex-mulher e jornalista, quarenta anos mais jovem. Claudia Faissol convenceu João a fazer um tour de shows para celebrar os então 80 anos, pelo qual teria recebido R$ 1 milhão adiantado – mas João cancelou a agenda. Os filhos também a acusam de ter feito contratos com o banco Opportunity, em 2013, que ficou com 60% de seus primeiros quatro álbuns (três fora de catálogo) em troca de R$ 5 milhões. Desse acordo com o Opportunity, Claudia receberia 10% dos direitos autorais e 5% da parte da indenização da EMI que cabe ao banco. O caso corre na Justiça.

Os ruídos íntimos espalhados aos quatro cantos obtiveram a reação de um jornalista português, Miguel Esteves Cardoso, no jornal O Público: “O mundo inteiro tem uma imensa dívida de prazer para com João Gilberto. Temos a obrigação não só de ajudá-lo, mas de ajudá-lo de maneira a que ele não saiba que o ajudamos. O nosso dever, nascido dessa nossa dívida (essa, sim, gigantesca demais para alguma vez ser paga) é sossegá-lo, protegê-lo, deixá-lo em paz. Basta ouvi-lo para saber como.”

João apareceu nas últimas fotos e vídeos em situações forçadas, uma vez em companhia de uma neta, outra da última mulher, Maria do Céu. Segundo Bebel, usaram o pai para servir de prova de bom relacionamento e favorecer a curatela. João Marcelo reagiu: “desculpa, pai, eu não consegui manter os abutres longe de você.”

A mídia noticiou os fatos, e os fatos foram ensurdecedores para um músico que elegeu reclusão como forma de vida. Sua última aparição pública havia sido nos shows de 2008 pelos cinquenta anos da bossa nova. Não admira que uma repórter da Globo, ao noticiar o corpo velado de João no Teatro Municipal do Rio, tenha trocado o nome do músico pelo de Gilberto Gil. E Ana Maria Braga, no seu programa, também “matou” Gilberto Gil, confundindo o nome. No ano passado, um repórter da Folha publicou uma matéria com o título À espreita de João, mas fez plantão na rua errada, na General Urquiza, quando todo Rio sabia, embora não o visse, que João morava na Carlos Góes. Agora, João volta à mídia sem que sua arte tenha sofrido qualquer arranhão, mas com a biografia avariada pela cobiça, logo ele que dependia dos amigos para a camisa do próximo disco.

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Norma Couri é jornalista.