Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Sobre religião e política

Em maior ou menor espaço, os jornais cariocas noticiaram o falecimento, aos 96 anos de idade, do professor Agenor Miranda Rocha, docente durante 46 anos do tradicional Colégio Pedro II e do Instituto de Educação e o maior dos babalaôs (adivinhos) restantes da tradição nagô-ketu brasileira. Sobre ele, eu e Luis Filipe de Lima (jornalista e músico) havíamos publicado um livro (Um Vento Sagrado, Editora Mauad), em que contávamos a história de uma vida marcada pela religiosidade, pela poesia, pela música e por uma sabedoria generosamente distribuída. Uma vida singularíssima, possível apenas, talvez, dentro do jogo complexo e ambivalente das relações sociais brasileiras.

Entretanto, não trago aqui o fato de seu passamento (para mim, muito doloroso, pela amizade e pela companhia constantes) com o intuito de repetir homenagens já prestadas pela mídia e pelo ‘povo-de-santo’ de São Paulo, Rio e Bahia. É que o assunto pode servir como guia reflexivo para fatos e fenômenos recentes (acompanhados principalmente pela imprensa escrita), relativos às relações entre vida política e religião.

Como bem se sabe, política e religião relacionam-se tradicionalmente apenas por aspectos externos, isto é, pelo jogo de influências entre dois campos que se pretendem distintos. É uma situação decorrente do fato de que o Estado moderno se afirma como decididamente laico, logo, dissociado da religião. Estado é a forma de organização política apropriada à emergência histórica do sujeito da consciência autônoma, portanto, a um nível de realização humana diverso do implicado na experiência religiosa.

Primeiro plano

Na Historia do homem ocidental, a experiência que se diz ‘religiosa’ é basicamente romana, já que os gregos não detinham nem uma experiência particular dessa ordem, nem mesmo uma palavra que correspondesse a ‘religião’. Religio provém, assim, seja de religare (o homem ao divino), seja de relegere, no sentido de reunir ou redispor, no interior de um conjunto axiomático, ordenações diferentes de poder. A experiência religiosa diz respeito ao que no homem é transcendente. Em outras palavras, a uma interpelação que, vindo de um Grande Outro, ultra-humano, sobrenatural, sagrado, perpassa todo o ser de suas identificações.

Na religião, os valores se absolutizam e tendem a se universalizar, escudados numa certa violência simbólica (que busca inculcar as suas ordenações de força e poder advindas da gestão do sagrado), seja por estruturas de subordinação ou de intermediação. Aí se inclui a própria atividade política: o monoteísmo pode ser pensado como questão política, assim como a política medieval era fundamentalmente teológica.

Ora, o homem da modernidade ocidental transita noutro plano, por ser antes de tudo sujeito, quer dizer, uma imanência, exigida pela dinâmica de produção total do capitalismo emergente. Transformar todo real em objeto e todo homem em sujeito é o único fundamento universal de qualquer processo modernamente histórico. Na ordem em que reina o sujeito, caem as transcendências, neutralizam-se os valores e suspende-se toda forma de violência simbólica do sagrado em função de um valor único, que é o valor de troca.

A política, e mais precisamente o liberalismo político, é o modo primordial de encaminhamento das ordenações de força e poder. Essa neutralização da esfera absoluta dos valores – que o sociólogo alemão Max Weber chamou de ‘desencantamento do mundo’ – é a possibilidade de existência da política liberal.

Mas a religiosidade não desaparece de fato. É com este pressuposto que se encaminham afirmações (como a do filósofo alemão Jürgen Habermas, ao receber, em outubro de 2001, o Prêmio da Paz, outorgado pela Câmara Alemã do Livro) em favor uma sociedade pós-secular em que a religião continua presente como fato social. Claro, como pensador radicalmente europeu, ele põe em primeiro plano o cristianismo, hoje profusamente avaliado como uma verdadeira experiência secular do amor crístico e como uma fonte de sentido humanista para a consciência desarraigada diante das forças do mercado planetário.

Julgamentos futuros

Mas a heterogeneidade simbólica presente nas camadas subalternas das populações ‘terceiro-mundistas’ dá ensejo a que se considerem experiências mítico-religiosas capazes de produzir formas de pensamento menos totalizantes (as religiões universais são naturalmente totalizantes) e mais ajustadas aos imaginários sociais específicos de determinados territórios. No Brasil, as mutações demográficas das últimas cinco décadas repercutiram fortemente sobre todas as formas de expressão da vida religiosa, em especial no caso dos migrantes rurais que tiveram de reconstruir na periferia das grandes cidades as suas referências simbólicas.

A religião, mas também a televisão, desempenha aí um papel muito importante.

A complexidade desse fenômeno, sobre o qual se debruçam estudiosos brasileiros e estrangeiros, inibe análises sumárias. Não há dúvida, porém, de que determinadas seitas têm-se encaminhado para uma espécie de ‘sacralização do político’, transformando-o anacronicamente em epifenômeno da religião. Não é de se estranhar, portanto, que a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) tenha entrado no Supremo Tribunal Federal (STF) com uma ação direta de inconstitucionalidade contra a lei do estado do Rio de Janeiro que institui o ensino religioso nas escolas da rede pública. Diz uma matéria jornalística:

‘De acordo com a lei, publicada em 2000, a disciplina é facultativa e só pode ser lecionada por professores credenciados pela autoridade religiosa competente. A lei também estabelece que o conteúdo da matéria é atribuição específica das autoridades religiosas e que o estado tem o dever de apoiá-lo integralmente’ (O Globo, 4/8/04).

Na verdade, a lei fluminense, evidente retrocesso na modernidade liberal, afronta a Constituição federal em mais de um artigo.

Em que a história de vida do professor Agenor Miranda Rocha pode contribuir para o arejamento do debate? Lendo-se os seus textos e as suas declarações, aprende-se sem maiores delongas que a religiosidade que o ligava a uma tradição africana não implica poder de Estado, nem a pregação de uma verdade única à qual se devessem dobrar quaisquer outros credos ou denominações religiosas. Para ele, não havia ‘religiões verdadeiras’, contrapostas às falsas. O amor à divindade comprovava-se pela fé, provinda de um ‘coração puro’. Ele não aceitava nenhum dinheiro por sua prática, mas enfatizava a aceitação de outras formas de crença. Por isto, o Dalai Lama, que foi visitá-lo em sua casa no Engenho Novo, lhe assegurou: ‘Você é também budista’.

Algo desta lição, provinda das esferas do não-poder, talvez possa inspirar o STF e os editorialistas de jornais em seus julgamentos futuros.

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Jornalista, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro