Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Guerra de vazamentos volta jornalista contra jornalista

Um homem solitário e descontente, com acesso a segredos militares, depara-se com documentos que desmascaram ações do governo numa guerra perdida e decide, por vários motivos – alguns, nobres; outros, pessoais –, partilhá-los com o mundo. Isso foi Daniel Ellsberg em 1969 e, devido a seus esforços, com a publicação dos Papeis do Pentágono, ele foi investigado e indiciado, mas acabou sendo aclamado como um herói e preservado como um dogma jornalístico.

Nos dias de hoje, esse papel foi assumido pelo soldado Bradley Manning (que agora quer ser conhecido como Chelsea) e Edward Snowden. As possibilidades de que os dois sejam amplamente declarados heróis não são assim tão grandes: o soldado Manning foi condenado a 35 anos de prisão e Snowden, que revelou documentos mostrando a amplitude da vigilância feita pela Agência Nacional de Segurança (NSA, pela sigla em inglês), continua escondido na Rússia, onde o governo dos Estados Unidos não pode alcançá-lo.

Talvez mereçam a situação em que se encontram. Eles sabem, ou deveriam saber, quais os riscos de revelar informações que lhes haviam sido confiadas e, assim mesmo, decidiram ir em frente. Como quase todos os autores de denúncias, são pessoas difíceis com motivos complicados. E também o são os jornalistas que os ajudam. Nada tem de surpreendente que Julian Assange, o fundador do WikiLeaks que intermediou a publicação dos documentos do soldado Manning, assim como Glenn Greenwald, o colunista do jornal britânico The Guardian que liderou as revelações de Snowden, tenham se tornado alvo de intensas críticas.

Vista grossa ao uso de tortura

O estranho é que muitas das pessoas que apontam o dedo são jornalistas. Quando Greenwald compareceu ao programa Meet the Press [Encontro com a Imprensa], depois da primeira rodada de artigos da NSA, o jornalista David Gregory aparentemente mudou o nome do programa para Meet the Prosecutor [Encontro com o Promotor]. E perguntou: “Na medida em que o senhor ajudou e acobertou Snowden, mesmo em suas atividades atuais, por que o senhor, sr. Greenwald, não deveria ser acusado de um crime?”

Jeffrey Toobin, que trabalha para a CNN e para a revista The New Yorker, chamou Edward Snowden de “um narcisista ostentador que merece estar preso”. Esta semana [semana passada] ele afirmou que David Miranda, o companheiro de Glenn Greenwald que foi detido por nove horas pelas autoridades britânicas com base na lei antiterrorismo, era o equivalente a uma “mula de drogas”. Julian Assange também vem sendo vítima de críticas destrutivas, inclusive nas páginas do New York Times, que acusou, entre outras coisas, seu comportamento inaceitável, uma vez que o jornal cooperou com o WikiLeaks publicando inúmeros artigos em 2010 com base nas revelações do soldado Manning. Esta semana [semana passada], Michael Grunwald, correspondente da revista Time, escreveu no Twitter: “Mal posso esperar para escrever defendendo o ataque de um drone que atinge Julian Assange” (posteriormente, ele pediu desculpas, talvez após refletir que salivar de prazer com a morte de alguém não seria de bom gosto).

O que fizeram Assange e Greenwald para inspirar tamanha raiva em outros jornalistas? Devido aos vazamentos e às matérias que eles divulgaram, ficamos sabendo que, em nome de perseguir terroristas, a NSA vem rastreando chamadas telefônicas e e-mails há anos, registrando a lista de dados estatísticos da correspondência entre cidadãos norte-americanos e, em alguns casos, acessando o conteúdo de e-mails. Os documentos do WikiLeaks revelaram que os Estados Unidos fizeram vista grossa ao uso de tortura pelos nossos aliados iraquianos e que foi ordenado um bombardeio aéreo para cobrir a execução de civis. O WikiLeaks também divulgou um vídeo mostrando um helicóptero do exército norte-americano abrindo fogo contra um grupo de civis, entre os quais estavam dois jornalistas da Reuters.

Ferramentas do governo

No caso das matérias baseadas nos documentos confidenciais roubados nos vazamentos feitos por Manning e Snowden, ficamos a par do que o nosso país vinha fazendo em nosso nome, fosse em zonas de guerra ou no reino digital.

Jeffrey Toobin concorda que se criou um debate importante, mas diz que nenhuma matéria, por mais importante que seja, justifica que jornalistas acobertem atos ilegais e diz: “Os jornalistas não estão acima da lei.” “Muitos jornalistas, como Jane Mayer, Sy Hersh e Walter Pincus, fizeram um trabalho magnífico durante décadas sem a ilegalidade desenfreada que estava por trás destas matérias”, acrescenta. “Nunca ouvi qualquer um desses jornalistas endossarem o roubo por atacado de milhares de registros confidenciais do governo.”

O tom da maior parte das críticas dirigidas a Assange e Greenwald é de repugnância – eles não seriam aquilo que consideramos verdadeiros jornalistas. Ao invés disso, representam um Quinto Estado emergente composto por pessoas que fazem vazamentos, ativistas e blogueiros que atacam aqueles que, dentre nós, trabalham na mídia tradicional. Eles não são como nós.

“Quando assumi, não fui tratado como herói de jeito nenhum. Fui indiciado e passei dois anos em audiências nos tribunais”, disse Daniel Ellsberg numa entrevista. “Mas naquela época os jornalistas não se voltavam contra os jornalistas. Especificamente com Snowden, há uma ruptura entre os jornalistas realmente independentes e aqueles que são ferramentas – uso a palavra em todos os sentidos do termo – do governo. Toobin e Grunwald estão fazendo o trabalho do governo para manterem as boas relações e o acesso.”

Relacionamento com fontes é sempre tenso

É verdade que Assange e Greenwald são ativistas com o tipo de agendas políticas claramente definidas, o que seria mal visto numa redação tradicional. Mas estão agindo numa época de maior transparência – de certa maneira, eles são suas próprias redações – e suas crenças políticas não impedem que outras organizações jornalísticas sigam suas pistas. (Na realidade, o Times confirmou na sexta-feira [30/8] que iria trabalhar numa série de artigos com o Guardian, tendo por base os documentos da NSA.)

Sim, o questionável Glenn Greenwald e o muitas vezes desagradável Julian Assange não se limitam a ter opiniões; eles as esfregam em nossos narizes guiados pelos jornalões. Durante o período que durou a colaboração e cobertura da investigação do WikiLeaks, Julian Assange e Bill Keller, que na época era editor-executivo do Times, trocaram alguns insultos memoráveis. (Compreendo parte desse antagonismo: participei de um almoço no campo, na Inglaterra, com Assange e ele anunciou aos presentes que achava que as principais exigências para trabalhar como jornalista no New York Times eram sua capacidade de mentir e de ofuscar. Obrigado, sr. Assange. Pode passar a salada, por favor?)

Numa entrevista por telefone, Bill Keller sugeriu que deixara “Julian encher o saco mais do que deveria”. Mas também disse que Julian Assange deveria gozar da proteção garantida a todos os jornalistas. Ele disse que o relacionamento com as fontes e com os concorrentes sobre a cobertura era sempre tenso e perigoso, mas a tecnologia criou uma situação de desorganização tanto para o modelo de negócios quanto para a prática do jornalismo. “As coisas que costumavam acontecer num lugar sossegado, com uma espécie de Normas Oficiais, agora transformaram-se numa Federação Mundial de Luta Livre com todo mundo se amontoando em cima do ringue e distribuindo socos”, afirmou. “Tem havido uma tendência de pessoas acostumadas a um mundo mais decoroso ficarem indignadas com os personagens que adquiriram proeminência neste novo mundo.”

O fogo amigo de jornalistas

O reflexo é compreensível, mas ao se referir a quem merece ser chamado jornalista e, como tal, legalmente protegido, os críticos de dentro da imprensa dão ao atual governo uma justificativa para seu foco na ética da divulgação, e não na moralidade do comportamento do governo. “Eu acho que as pessoas no nosso ofício que têm suspeitas de Glenn Greenwald e críticas a David Miranda não estão refletindo em profundidade”, disse Alan Rusbridger, editor-chefe do Guardian. “Os governos estão confundindo jornalismo com terrorismo e usando a segurança nacional para se envolver numa vigilância maciça. As implicações disso, apenas em termos de como se pratica o jornalismo, são enormes.”

Se as revelações sobre a vigilância da NSA tivessem sido divulgadas pela revista Time, pela CNN ou pelo New York Times, os executivos desses veículos já estariam construindo novas prateleiras para colocar os esperados prêmios Pulitzer e Peabody. O mesmo vale para o vídeo de 2010 do WikiLeaks sobre o ataque do helicóptero Apache. Em vez disso, os jornalistas e organizações jornalísticas que fizeram esse trabalho são vítimas de um ataque – e não apenas de um governo disposto a guardar segredos, mas do fogo amigo de colegas jornalistas. O que estamos pensando?

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David Carr tem uma coluna sobre mídia e cultura no New York Times