Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Boas reportagens reforçam a relevância dos jornais

“Oitenta e cinco por cento das notícias produzidas profissionalmente consideradas responsáveis vêm dos jornais, mas eu já ouvi dizer de fontes confiáveis que este número chega a 95%.” (Alex Jones, no livro Losing the News)

O Wall Street Journal publicou, no início de dezembro, uma importante série, dividida em três partes e que terminou com uma matéria sobre como o Departamento de Veteranos usou a lobotomia em pelo menos 1.930 soldados que voltavam da II Guerra Mundial e sofriam o que hoje se chama de Transtorno por Estresse Pós-Traumático ou algum outro tipo de doença mental que os médicos simplesmente não sabiam como tratar. “Nós não sabíamos o que mais poderia ser feito por eles”, diz um médico aposentado, hoje com 90 anos.

A série de matérias, escrita pelo veterano jornalista Michel M. Phillips, que foi correspondente de guerra do Journal, é narrada meticulosamente, utiliza um tesouro de documentos recém-descobertos e é escrita com uma elegância subestimada, na melhor tradição das longas matérias investigativas, institucionalizadas pelo grande Bernard Kilgore nas décadas de 1940 e 50.

Desdobrando-se numa tecnologia com grande discrição, a versão digital é maravilhosa. Sem quaisquer ninharias, a série de matérias integra o texto e outros elementos com perfeição. A introdução – um vídeo intrigante de arquivos velhos e mofados sendo transportados através de uma biblioteca – dissolve-se numa fotografia inquietante de um veterano idoso sobre um texto desenhado. A primeira parte da série começa com uma cena de pesadelo do mesmo veterano, mas com 29 anos de idade, lutando contra assistentes do hospital que vieram buscá-lo. Fotografias recentes e de arquivo, mapas e documentos são habilmente introduzidos no texto para criar uma experiência perfeita e envolvente. O primeiro dia termina com um documento completo da época, oferecendo conselhos às famílias dos veteranos lobotomizados. A intenção do documento era ajudar, mas para nós dilacera o coração: “…Você poderá achar que ele não age como agia antes de adoecer ou antes da operação.”

O segundo dia aumenta as informações públicas do agora desacreditado Walter J. Freeman, conhecido por defender os benefícios das lobotomias em civis considerados mentalmente doentes e apresentado aqui como pessoa muito procurada pelo Departamento de Veteranos.

Dasani em Nova York

Se você perdeu essa série de matérias, provavelmente foi porque estava lendo a obra-prima – é a única expressão para esse artigo – de Andrea Elliott no New York Times sobre a vida inesquecível da menina Dasani, de 11 anos, e de sua família. Uma das grandes séries de reportagens de qualquer tipo de que me lembre, ela remete ao século 19 e Jacob Riis, e lembra o trabalho de Alex Kotlowitz no Wall Street Journal na década de 1980 que proporcionou a base para “There Are No Children Here: The Story of Two Boys Growing Up in the Other America” (1991), nos projetos habitacionais de Chicago. Também me fez pensar em “Common Ground: A Turbulent Decade In the Lives of Three American Families”, de J. Anthony Lukas, principalmente devido à incrível riqueza de detalhes que só são possíveis se você passar uma enormidade de tempo com as pessoas que são descritas. Neste caso, uma nota no final da série de artigos informa que foi quase um ano para a repórter Andrea Elliott e a fotógrafa Ruth Fremson.

Uma das coisas que os jornais fazem bem quando estão trabalhando corretamente é conectar pessoas que normalmente nem se conheceriam. Isso ainda é verdade na era digital, quando os “jornais” são uma versão resumida para as grandes organizações jornalísticas. Neste caso, a conexão é feita entre a audiência de classe média do Times e uma Nova York que se sente como se ocupasse um universo paralelo. Em um dos universos, uma garrafa de água é uma reflexão; no outro, é uma aspiração.

Fragmento de um diálogo

Li a série de cinco artigos (depois de superar a barreira do tamanho), bem mais de 20 mil palavras, em duas ou três vezes, um pouco online e um pouco no telefone celular. A série utiliza as vantagens digitais e a inovação mais importante são as notas de rodapé.

Mas é a matéria como história que é completamente inesquecível: tem ritmo, tensão, um arco narrativo e, acima de tudo, uma personagem. Está certo que Dasani é excepcional de várias maneiras: complexa, vulnerável, forte, inocente e esperta, para muito além de sua idade. Mas é isso que está em questão nesta série de matérias. Ela é tudo isso, mas também o são as 22 mil crianças de rua em Nova York (o número mais alto desde a Grande Depressão; temos o mais alto índice de pobreza infantil de qualquer país desenvolvido, com exceção da Romênia. Mas as personagens coadjuvantes também são irresistíveis, incluindo sua mãe, Chanel, e o padrasto, Supreme, ambos complicados, perturbados e, à sua maneira, fazendo um esforço; e, mais inesquecíveis para mim, as pessoas da escola. A professora, Faith Hester, e a diretora, Paula Holmes. Eis aqui um fragmento de uma das muitas ocasiões em que Dasani é chamada ao gabinete da diretora por se envolver em brigas com outras crianças:

“Por favor, não chame minha mãe”, sussurra Dasani.

Paula Holmes está sentada numa cadeira giratória de couro sintético, com remendos de fita adesiva. Ela olha para a menina angustiada. Está na escola há tempo suficiente para saber quando transgressões de uma criança na escola podem significar uma surra em casa. Devagar, a diretora leva sua cadeira até Dasani e se inclina até ficar a alguns centímetros de seu rosto.

“OK”, diz ela de mansinho. “Vamos fazer um acordo.”

Quando Chanel não chega em casa após uma detenção e acusação relacionada a drogas, temos a sensação do que é ser uma criança arrancada de casa no meio da noite:

Naquela noite, quando Chanel não voltou, Dasani sentiu algo no ar. Alguém bateu à porta. Dasani mandou as crianças não fazerem barulho. Fingiram que estavam dormindo. Então, a porta se abriu e entrou um supervisor [do correspondente ao Conselho Tutelar] e um policial do Serviço dos Sem Teto, que disseram às crianças que se vestissem.

E por aí afora.

Temporada de Pulitzer

As notas não explicam como foram obtidos os detalhes dessa cena específica, mas ela é típica da intimidade conseguida pela série de matérias. É notável. É impossível, por exemplo, não incentivar Dasani e ter aquela sensação de naufrágio que se segue a um encontro ao acaso com uma celebridade de autoajuda que parece a oportunidade de uma vida. Lendo como tudo dá errado, percebe-se o indício de uma imensa porção de coisas que ainda têm que dar certo, mesmo para conseguir um golpe de sorte em adiantamento concreto.

É essa montanha de detalhes – para não falar das questões estruturais enumeradas e opções de políticas que contribuem para as andanças errantes desta família – que esmaga os argumentos comuns, pintados com cores sombrias sobre responsabilidade pessoal, como aqueles da diretoria editorial do New York Post. Desculpem, mas é complicado.

Os cínicos podem dizer que estamos na temporada do prêmio Pulitzer, quando os jornais desenrolam seus grandes projetos para encarar os prazos dos prêmios de fim de ano. E não estão errados. Mas para mim, isso diz mais sobre o valor dos prêmios do que qualquer outra coisa. Se é isso que é preciso para fazer este trabalho, qual é exatamente o prejuízo?

Às vezes, é o caso de se dar crédito a quem o merece.

Sente-se no lugar do passageiro

Alex Jones publicou seu livro em 2009, mas não sei se os números que ele menciona mudaram tanto assim. É claro que há muito o que dizer sobre novos sites digitais e sua lista de conquistas. Mas, como eu disse, falamos sobre a diferença entre um jornalismo feito em escala artesanal e outro em escala industrial.

Nem todas as investigações são ótimas; nem todos os artigos longos, e de profundidade, merecem o espaço. Mas quando escrevi sobre o declínio da escrita de artigos longos (inclusive e especialmente no Wall Street Journal), inclusive com este gráfico…

…este é o tipo de trabalho – investigações perdidas, conhecimento público perdido – que está em jogo.

E aqui vai uma coda:

Morreu [no início de dezembro], muito jovem, Bob Kramer, um mestre em vigilância e provavelmente o maior repórter investigativo que já saiu do Providence Journal. Entre outros grandes trabalhos, ele expôs os vínculos de um juiz da Suprema Corte de um tribunal de Rhode Island com o crime organizado, levando à sua exoneração.

Numa mensagem enviada ao Facebook por ex-companheiros do Providence Journal, um colega lembra uma dica dada por Kramer sobre a melhor maneira de vigiar alvos de dentro de um carro: sente-se no lugar do passageiro; assim, as pessoas que passam pensarão que você está esperando pelo motorista.

Esse é o tipo de habilidade de repórter que deveríamos almejar.

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Dean Starkman é jornalista