Friday, 03 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

A coletiva de imprensa de cartas marcadas

Todos os anos, em março, milhares de jornalistas locais e estrangeiros se reúnem no Grande Salão do Povo, ao lado da Praça da Paz Celestial, em Pequim, para uma coletiva de imprensa com o primeiro-ministro chinês. O evento, que fecha o Congresso Nacional do Povo, é transmitido pela TV para mostrar aos cidadãos chineses que seus líderes são modernos, sábios e corajosos o suficiente para enfrentar um batalhão de repórteres – muitos deles membros da desagradável imprensa ocidental.

Há apenas um detalhe: é tudo armado. Todas as perguntas feitas pelos jornalistas “escolhidos” são previamente avaliadas e aprovadas. Profissionais de veículos estrangeiros e autoridades do Ministério das Relações Exteriores da China negociam com meses de antecedência quais temas são permitidos e como as questões serão redigidas.

No evento da semana passada, CNN, Reuters, CNBC, Associated Press e Financial Times estavam entre os veículos que puderam fazer perguntas ao primeiro-ministro Li Kegiang. De acordo com jornalistas estrangeiros envolvidos nas negociações com o governo chinês, alguns temas estavam fora de cogitação. Entre eles, o ataque em uma estação de trem no sudoeste do país, no início de março, que deixou 29 vítimas, e as autoimolações no Tibete. Também não podiam ser feitas referências a Zhou Yongkang, ex-chefão do serviço de segurança interna que estaria sendo investigado por acusações de corrupção.

Com tudo acertado com a imprensa, Li Kegiang pôde falar com segurança, e de maneira generalizada, sobre as relações da China com os EUA (“Pessoas inteligentes irão buscar interesses em comum, enquanto as insensatas irão focar em suas diferenças”) e sobre a luta contra a corrupção governamental (“A corrupção é o inimigo natural de um governo do povo”).

Dilema

Ainda que o acordo já exista há pelo menos uma década, e diante dos perigos de se contrariar autoridades chinesas – e correr o risco de ter seu visto negado –, cada vez mais repórteres estrangeiros se recusam a entrar no jogo. Há quem rejeite a pergunta que lhe é oferecida pelas autoridades, e há quem se recuse a participar daquele que é o único encontro entre um líder chinês de peso e a imprensa estrangeira. “Claro, nós estamos sendo usados, mas é um dilema para os jornalistas [decidir] participar do jogo ou não”, resume Stephen McDonell, repórter da Australian Broadcasting Corporation. “Se [os correspondentes] não fizerem uma pergunta mais ou menos decente, então não haverá nenhuma questão da mídia internacional, o que pareceria estúpido, se bem que o governo talvez não se incomodasse tanto”.

McDonell é ex-presidente do Clube dos Correspondentes Estrangeiros da China e um dos maiores críticos dos esforços do governo chinês para manipular sua imagem pública com a conivência dos jornalistas. McDonell e outros correspondentes criticam o que chamam de “jornalistas falsos”, profissionais estrangeiros contratados por empresas que se mascaram como organizações internacionais mas são controladas pelo Partido Comunista Chinês.

Na semana passada, McDonell e outros correspondentes tumultuaram uma coletiva de imprensa. Depois de escolher apenas jornalistas de veículos controlados pelo Estado para fazer perguntas, o moderador da coletiva anunciou que haveria a participação de um repórter estrangeiro. Ele apontou então para uma jovem repórter australiana que trabalha para um grupo chinês sediado em Melbourne, na Austrália. McDonell não se conteve e gritou: “Será que podemos ter perguntas da imprensa estrangeira de verdade?”. Outros jornalistas aplaudiram e, após um silêncio embaraçoso, o microfone foi passado a ele.

McDonell é apenas mais um dos jornalistas que atuam na China e estão cansados da censura e das manipulações. Na semana passada, o jornal Ming Pao, de Hong Kong, dedicou uma página inteira ao sistema de perguntas pré-aprovadas na coletiva de imprensa que fecha o Congresso do Povo. Seth Doane, da CBS News, fez questão de expor a negociação, dizendo que foi informado de que sua questão seria a de número oito, mas instruído a levantar a mão antes de todas as perguntas anteriores para que sua escolha parecesse aleatória.