Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Por que a imprensa americana olhou para o outro lado?

Por que a mídia dos EUA demorou tanto tempo a dar destaque a denúncias consistentes contra o humorista Bill Cosby, uma das figuras mais importantes da televisão americana por décadas? Acusações de abuso sexual contra Cosby, hoje com 77 anos, vêm pipocando nas últimas semanas. Há pelo menos 17 delas, quase todas seguindo o mesmo roteiro: as vítimas eram drogadas e sentiam-se intimidadas pelo poder da figura pública do ator e comediante.

Os casos só ganharam destaque após o comediante Hannibal Buress atacar o “falso moralismo” de Cosby em uma performance de stand up, em outubro. Mas não é de agora que eles surgiram: em 2000, a atriz Lachele Covington foi à polícia denunciá-lo por tentativa de abuso sexual; em 2005, ele enfrentou um processo na justiça pela acusação de estupro de Andrea Constand. Por que a mídia nunca se aprofundou no tema?

Mea culpa

David Carr, colunista de mídia do New York Times, abordou o tema em artigo recente. Os membros da imprensa que sabiam dos casos guardaram as informações para si, diz Carr. Mark Whitaker, autor de uma biografia sobre Cosby, por exemplo, não abordou as acusações em nenhuma das 500 páginas do livro porque, segundo ele, não queria incluir nada que não tivesse sido confirmado.

Já o correspondente Ta-Nehisi Coates, que omitiu as acusações em um longo artigo escrito sobre o ator para a revista The Atlantic em 2008, afirmou recentemente que se arrepende de não ter tocado no assunto. “Eu me arrependo porque não ter perseguido [as acusações] me colocou no mesmo grupo das pessoas que olharam para o outro lado ou que não olharam de perto o suficiente”, admitiu Coates.

O próprio David Carr fez mea culpa: em 2011, o colunista entrevistou Cosby para uma revista de uma companhia aérea e, em nenhum momento, perguntou ao comediante sobre as acusações. Segundo Carr, na época da entrevista ele sabia das alegações contra Cosby porque havia lido um artigo publicado na revista The Philadelphia Magazine que detalhava algumas delas. Para Carr, como jornalista ele deveria ter recusado o trabalho se não iria contar toda a verdade sobre o comediante. Mas não o fez.

Ao ignorar as acusações, diz Carr, a imprensa falhou em não apoiar as mulheres que tiveram coragem para vir a público denunciar um dos homens mais poderosos do entretenimento americano.

Entrevista em troca de silêncio

Além dos casos citados pelo jornalista, um novo exemplo de como a mídia ignorou as denúncias veio a público recentemente. Segundo documentos revelados pela corte federal do estado da Filadélfia, Cosby admitiu sob juramento, em 2005, que concedeu uma entrevista exclusiva para o tabloide sensacionalista The National Enquirer naquele ano em troca da promessa de que o jornal não publicaria uma entrevista com Beth Ferrier, que afirmava ter sido drogada e estuprada por ele na década de 80. Na época, o comediante era acusado de abuso sexual por Andrea Constand, membro do programa de Basquete da Universidade de Temple. Andrea entrou na justiça contra o ator alegando que ele a havia drogado e estuprado em 2004. O caso, no entanto, foi resolvido por um acordo fora dos tribunais.

De acordo os documentos, Cosby admitiu que concedeu a entrevista exclusiva para o tabloide para que a entrevista de Beth Ferrier não fosse divulgada. Segundo o ator, caso a história fosse publicada, a opinião pública ficaria mais disposta a acreditar que as acusações de Andrea eram verdadeiras.

Na entrevista que foi publicada no lugar da matéria com Beth Ferrier, Cosby rebatia as acusações contra ele. No artigo, que teve como título “Bill Cosby interrompe o seu silêncio: A minha história!”, o jornal descrevia que o comediante estava “furioso” com as denúncias.

Bola de neve

Não é correto afirmar, no entanto, que toda a mídia americana decidiu olhar para o outro lado. A ABC News reportou em 2005 as acusações de Andrea Constand. O programa The Today Show também reportou que Cosby teria abusado de Tamara Green, advogada do estado da Califórnia. E a Philadelphia Magazine publicou, em 2006, artigo em que detalhava uma lista de vítimas do comediante. Ainda assim, a pauta parece nunca ter ganhado força suficiente. Até agora.

Em 13/11, a ex-atriz Barbara Bowman escreveu um artigo para o site do Washington Post alegando que foi drogada e estuprada por Cosby nos anos 80, quando tinha 17 anos. Logo depois, outra ex-atriz, Joan Tarshis, afirmou a um blog sobre notícias de Hollywood que também fora drogada e estuprada pelo ator. No caso dela, a agressão teria ocorrido em 1969, aos 19 anos de idade. Outras mulheres começaram a vir a público contar suas histórias, entre elas a ex-modelo Janice Dickinson, que o fez no programa de TV Entertainment Tonight.

Com a repercussão do caso, a agência Associated Press divulgou o vídeo de uma entrevista concedida por Cosby no início de novembro em que ele pede ao repórter que exclua uma pergunta sobre as acusações de estupro.