Monday, 27 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1289

Corra, Angela Merkel, corra!

Na língua portuguesa, não existe um termo feminino para designar o cargo ocupado por Angela Merkel à frente do governo alemão. Nos dois países-líderes da Europa – leia-se Alemanha e França, cuja língua limita o uso de substantivos femininos, principalmente quando se trata de profissões para as mulheres –, a mídia adotou as versões Kanzlerin e chancelière sem maiores problemas.

Pelo ineditismo, o fato de Angela Merkel ser mulher recebeu o devido destaque nos jornais e revistas europeus. Nesse contexto, não faltaram comparações com a ‘antecessora’ inglesa Margaret Thatcher. O codinome ‘Dama de ferro 2’ paira no ar.

O fenômeno não é restrito apenas às revistas femininas, que antes das eleições alemãs davam destaque à primeira mulher que atingiu o alto escalão político do país (um bom exemplo é a edição alemã de agosto da Cosmopolitan, com uma entrevista da futura chanceler). No sábado (15/10), a versão online da revista semanal Der Spiegel publicou um dossiê especial intitulado ‘Das eiserne Mädche’ (‘a menina de ferro’), fazendo uma retrospectiva da carreira de Merkel.

A Spiegel mostra como a mulher conhecida como ‘a menina de Kohl’ – sinônimo de sua subestimação pelos grandes políticos da Alemanha – se tornou uma personalidade com luz própria. Apesar de enfatizar o fato de Merkel ser a mulher mais poderosa do país, a revista traça o perfil narrativo de uma carreira política que não necessariamente precisaria ser feminina – talvez até pelo fato de as mulheres, em muitos aspectos, não se sentirem representadas por Merkel [veja remissão abaixo ao artigo ‘O visual feminino no poder’, de 18/10].

Levada a sério?

Diversos aspectos da trajetória de Merkel contribuem para que a força política da chanceler seja destaque na mídia – seus 12 anos de carreira incluem cargos como o de ministra das Mulheres, do Meio Ambiente, Secretária-Geral do governo e líder do partido União Democrata Cristão (CDU), entre outros. Mas, ao menos no dossiê da Spiegel, são a astúcia e a obstinação de Merkel que se tornam objeto de admiração:

‘(…) Ela sempre agiu assim. Primeiro, ela observava em que direção as coisas evoluíam; depois, corria atrás sem descanso. Muitos afirmam que Merkel sacrificou muitos homens no caminho [em referência ao escândalo envolvendo o ex-chanceler alemão Helmut Kohl no financiamento ilícito do seu partido, o CDU, e o conseqüente artigo escrito por Merkel, então secretária-geral do partido, no Frankfurter Allgemeine Zeitung, afirmando que o CDU precisava de autonomia, se livrando de Kohl. Segundo o Spiegel, Merkel definiu a direção do partido naquela ocasião, desconstruindo a estratégia do então presidente da CDU, Wolfgang Schäuble, que era seu superior].’ (Der Spiegel, 04/11/2002)

Apesar disso, destaca-se também a ambigüidade da carreira da chanceler. A mulher originária do leste alemão ainda semeia desconfiança em diversos núcleos da Alemanha ocidental e vice-versa:

‘Ela entra em casa, uma mulher muito ocidental quando vista do leste, e muito oriental quando vista do oeste. Uma estrangeira na Alemanha.’ (Der Spiegel, 25/04/2005)

Olhar estrangeiro

Apesar de seguir a mesma linha da grande imprensa alemã, alguns veículos franceses, com seu olhar estrangeiro, fizeram mais referências à ‘mulher no poder’ desde a eleição de Merkel.

Em matéria publicada em 13/10, o vespertino Le Monde destacou o fair play com o qual os ‘homens políticos’ – expressão francesa que descreve os políticos e que, naturalmente, ainda é associada ao gênero masculino – acolheram a notícia de que ‘Angie’ seria a nova chanceler alemã.

‘Voltam os eternos clichês ligados, pelos homens, às mulheres. Para justificar seu lugar no poder, uma mulher deveria necessariamente manifestar uma certa rudeza, leia-se virilidade. Mas esqueçamos: de Jacques Chirac a Philippe Douste-Blazy [ministro francês das Relações Exteriores], passando por Dominique de Villepin [premiê francês] e Edouard Balladur [ex-premiê francês e atualmente deputado federal], todos elogiaram a chegada de uma mulher ao poder, pela primeira vez na história alemã.’

Por outro lado, o Monde destacou que tal atitude não passa de discurso, uma vez que, na França, a eqüidade masculina-feminina ainda esta longe de ser uma realidade.

‘Basta lembrar certas intenções recentes de dirigentes socialistas franceses sobre a possível candidatura de Ségolène Royal ao Eliseu para saber que a paridade na cúpula do país é apenas um estado de espírito. Verdades do outro lado do rio Reno, mentiras aqui… as ‘mulheres políticas’ podem esperar de qualquer forma, que o movimento alemão faça escola na França.’

Sendo mulher ou não, o que interessa agora é descobrir a que veio a física de 51 anos oriunda da antiga Alemanha Oriental para dar um jeito no país, a exemplo de um artigo publicado no Frankfurter Allgemeine Zeitung (15/10). Vê-se que a mídia já vai deixando de lado o fenômeno ‘mulher’. O que interessa, agora, é o futuro político da Alemanha e seu impacto sobre a Europa – daí a importância das alianças políticas nesse início de governo:

‘A boa notícia é Angie. A má é seu governo. Infelizmente, o mal provavelmente subverterá o bem. Mesmo que esta lady chancellor seja feita de ferro, uma coalizão confusa e instável poderá deixar seus pés na lama, e toda a Europa sairá mancando atrás.’ (The Guardian, 13/10)

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Jornalista, pós-graduada em Ciências da Informação e da Comunicação pela Sorbonne (Universidade Paris IV)