Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Quem tem medo da fúria muçulmana?

A capa aberrante da revista americana Newsweek (24/9) espelha o viés tomado pela mídia nas últimas semanas: o mundo islâmico estaria pegando fogo devido à indignação contra o Ocidente por causa de um filme “islamofóbico”, com hordas de protestos violentos nas ruas. Mas será verdade? Cidadãos e a nova mídia estão respondendo.

O Gawker (famoso site americano que escracha a mídia) satirizou brilhantemente esse exagero com fotos alternativas da “ira muçulmana”. Quando a Newsweek pediu aos usuários do Twitter suas próprias notícias sobre a “fúria islâmica”, com a hashtag (que marca temas na rede social) #MuslimRage, milhares responderam de maneira irônica e hilária. QasimRashid, por exemplo, escreveu: “Queimem toda a literatura ocidental… num drive para eu poder escutar enquanto dirijo.”

Sete coisas que você talvez não saiba sobre a “fúria”

Como todo mundo, muitos muçulmanos acharam o vídeo islamofóbico de 13 minutos, Innocence of Muslims (Inocência dos muçulmanos), uma porcaria ofensiva. Protestos rapidamente se espalharam pelo mundo muçulmano, lembrando queixas compreensíveis e duradouras sobre o neocolonialismo dos EUA e a política exterior dos países ocidentais para o Oriente Médio, assim como a sensibilidade religiosa quanto a retratar o profeta Maomé. Mas a maior parte da cobertura da mídia obscurece pontos importantes:

1. As primeiras estimativas da participação em protestos contra o vídeo ficaram em torno de 0,001% e 0,007% dos 1,5 bilhão de muçulmanos do mundo – uma minúscula fração daqueles que marcharam pela democracia na Primavera Árabe.

2. A imensa maioria dos protestos foi pacífica. Praticamente todos os ataques a embaixadas foram organizados ou instigados por elementos do movimento salafista, um grupo islâmico radical cuja maior preocupação é minar os mais populares grupos islâmicos moderados.

3. As autoridades líbias e americanas estão divididas quanto à morte do diplomata americano na Líbia ter sido possivelmente planejada para coincidir com o 11 de setembro, portanto não ligada ao vídeo.

4. Independentemente dos ataques de grupos militantes na Líbia e no Afeganistão, uma pesquisa nas notícias de 20/9 sugere que o número de pessoas efetivamente mortas por manifestantes foi zero. As mortes citadas pela mídia foram em geral causadas pela polícia.

5. Praticamente todos os maiores líderes, muçulmanos e ocidentais, condenaram o filme e praticamente todos, muçulmanos e ocidentais, condenaram a violência que possa ter sido cometida em resposta ao filme.

6. O papa estava visitando o Líbano no auge da tensão; os líderes do Hezbolllah compareceram à missa ao ar livre rezada pelo papa em Beirute, não protestaram contra o filme até ele ir embora, em um sinal de tolerância religiosa.

7. Após o ataque em Benghazi, pessoas comuns saíram às ruas da cidade e de Trípoli com cartazes, muitos em inglês, pedindo desculpas e dizendo que nem elas nem sua religião apoiavam a violência e que os perpetradores não os representavam.

Some-se a isso a quantidade de notícias efetivamente importantes da última semana que ficaram soterradas para dar espaço nas primeiras páginas à cobertura da “fúria” muçulmana. Na Rússia, dezenas de milhares de pessoas marcharam por Moscou em oposição ao presidente Vladimir Putin. Centenas de milhares de portugueses e espanhóis saíram às ruas em protesto contra a austeridade. Mais de um milhão de catalães marcharam pela independência.

Fúria islâmica ou estratégia salafista?

O vídeo Innocence foi pinçado, legendado em árabe e disseminado pela extrema-direita salafista – seguidores radicais de um movimento islâmico há muito apoiado pela Arábia Saudita. Era um fracasso barato no YouTube até que um âncora salafista da televisão egípcia, Khaled Abdullah, começou a promovê-lo aos espectadores no sábado (8/9).

A maioria dos muçulmanos insultados ignorou o filme ou protestou pacificamente, mas os salafistas, com suas bandeiras negras, foram os principais instigadores dos protestos mais agressivos contra as embaixadas. Líderes do partido salafista egípcio estavam no protesto que invadiu a embaixada dos EUA no Cairo.

Tal como a extrema direita na América ou na Europa, a estratégia salafista consiste em arrastar a opinião pública para a direita aproveitando oportunidades para estimular a raiva e demonizar oponentes ideológicos. Essa abordagem lembra a do pastor anti-islâmico americano Terry Jones (o primeiro a promover o vídeo no Ocidente) e de outros extremistas ocidentais. Em ambas as sociedades, porém, os moderados são muito mais numerosos que os extremistas. O vice-presidente do partido egípcio Irmandade Muçulmana (o mais poderoso e popular oponente dos salafistas egípcios), Khairat el-Shater, escreveu ao New York Times dizendo: “Não consideramos o governo americano nem seus cidadãos responsáveis por atos dos poucos que abusam das leis que protegem a liberdade de expressão.”

Boas reportagens

Um solitário grupo de jornalistas e acadêmicos abordaram os protestos buscando entender realmente as forças por trás deles. Entre eles, Hisham Matar descreve com pinceladas fortes a tristeza em Benghazi após a morte do embaixador americano J. Christopher Stevens, e Barnaby Philips mostra como os conservadores islâmicos manipularam o episódio do filme a seu favor. A antropóloga Sarah Kendzior argumenta contra o tratamento do mundo muçulmano como uma unidade homogênea e o professor Stanley Fish aborda uma questão complicada: por que tantos muçulmanos são tão sensíveis a representações pouco lisonjeiras do Islã.

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