Wednesday, 01 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

França, ame-a ou deixe-a

Alguém pode pensar que é piada de brasileiro. Engana-se. Nunca a leitura dos jornais franceses proporcionou tanta surpresa como nos últimos dias. No Le Monde de quarta-feira (9/11) descobre-se estarrecido que o slogan ‘Brasil, ame-o ou deixe-o’ dos tempos do presidente-general Emílio Garrastazu Medici foi traduzido ao pé da letra e virou ‘La France, tu l’aimes ou tu la quittes’.

Nossos milicos fascistas fizeram escola no país dos direitos humanos! Isso só surpreende a quem não leu o livro de Marie-Monique Robin, Escadrons de la mort, l’école française (Esquadrões da morte, a escola francesa), onde descobrimos a ativa participação da França na transmissão de seu savoir-faire às ditaduras do Cone Sul, a partir da década de 1960. Agora, a importação de know-how dá-se em sentido contrário, mas o leitor francês ignora de onde saiu esse slogan, pois o Le Monde não menciona sua origem nos nossos anos de chumbo.

O slogan ‘La France, tu l’aimes ou tu la quittes’ foi lançado na terça-feira (8/11) pelo presidente do MPF (Mouvement pour la France, partido que se apresenta como soberanista, antieuropeu e católico), Philippe de Villiers. De Villiers, como seu nome indica, pertence à aristocracia e concorre com Le Pen na extrema-direita do leque político francês. Obviamente, ambos apoiaram as medidas de exceção anunciadas pelo primeiro-ministro Dominique de Villepin, que dá aos prefeitos a possibilidade de instaurar o toque de recolher depois de declarado o estado de emergência.

O grave é que essa lei desenterrada dos tempos da guerra da Argélia foi aprovada pela maioria dos franceses (73%) ouvidos numa pesquisa de opinião na semana passada. E tanto o Front National de Le Pen quanto o MPF de Philippe de Villiers já estão colhendo os frutos do clima de medo que se instalou na França profunda depois dos protestos que começaram nos subúrbios de Paris e se propagaram pelo resto do país. Ambos anunciaram dezenas de novas filiações a seus partidos.

A extrema-direita xenófoba, racista e antieuropéia exulta com todos os acontecimentos que servem para provar suas teses, ainda que a interpretação dos acontecimentos seja distorcida para se adaptar ao objetivo eleitoreiro de seus líderes. É preciso não esquecer que a extrema-direita é uma ameaça real, que Le Pen foi para o segundo turno das eleições presidenciais em 2002, batendo Lionel Jospin, e que a esquerda francesa está em pane.

Passado colonial

Importante ressaltar que o slogan ‘França, ame-a ou deixe-a’ não é dirigido aos estrangeiros. Como no Brasil da Lei de Segurança Nacional e do ‘inimigo interno’, a extrema-direita francesa aponta o dedo para os jovens dos subúrbios e os mostra como o ‘inimigo interno’, convidando-os a irem embora se não estiverem satisfeitos.

A prova de que o slogan se dirige aos jovens da periferia e não a todos os franceses é o tratamento na segunda pessoa do verbo (‘tu’). Esse tratamento, que denota ou falta de cerimônia ou desrespeito pelo interlocutor, costuma ser o usado pela polícia com os jovens ‘originários da imigração’. É uma maneira de abordar já humilhando. Um policial que se dirige ao um jovem de periferia costuma tratá-lo de ‘tu’, mas não ousa fazer o mesmo com um francês branco, mesmo jovem.

Para demonstrar (boa) vontade política e respeito aos franceses de origem magrebina ou africana, o ministro do Interior Nicolas Sarkozy deu ordens aos policiais de se dirigirem aos jovens da periferia com o tratamento ‘vous’, como aos cidadãos em geral.

Os estrangeiros envolvidos em atos de violência urbana serão expulsos depois de julgados, como decidiu Sarkozy, restabelecendo a pena dupla, por ele mesmo extinta há dois anos. A esses ninguém aconselha deixar o país, eles são ‘reconduzidos à fronteira’, como diz elegantemente a linguagem oficial.

O Partido Socialista contemporizou com o governo. François Hollande, o secretário-geral do PS, disse apenas que há que ser vigilante na aplicação das medidas de exceção. No Le Monde, um título da página 11 da edição de quinta-feira (10/11) resumia o problema da fragilidade da esquerda: ‘Dividida pelo estado de emergência, a esquerda não sabe como se opor ao governo’.

Já o Partido Comunista qualificou o recurso à lei de 1955, criada durante a guerra da Argélia para enfrentar a insurreição que levou à independência do país, como uma ‘provocação insensata’. O porta-voz da Liga Comunista Revolucionária (LCR), Olivier Basancenot (candidato a presidente da República em 2002), denunciou a ‘militarização delirante’ e conclamou os prefeitos a não utilizarem uma lei que marca um retorno ao passado colonial da França. Vários franceses descendentes de argelinos lembraram que essa medida é, no mínimo, uma ofensa pois aos excessos dos jovens dos subúrbios o governo exumou uma lei feita num contexto colonial.

Um psicanalista lacaniano poderia ter explicado a Chirac que o significante ‘guerra da Argélia’ que está colado a essa lei é adrenalina pura e faz renascer nos descendentes de argelinos, franceses de direito e de fato, todo o ressentimento e sofrimento do passado colonial. A periferia se acalma momentaneamente por causa do toque de recolher, mas o estrago está feito.

A matéria principal do jornal comunista L’Humanité de quarta-feira (9/11) dizia: ‘Em vez do diálogo, toque de recolher. Villepin decreta o apartheid social’. Nesse mesmo dia, Libération deu na capa: ‘Toque de recolher, esconde-miséria (couvre-feu, cache-misère): muitos prefeitos de cidades do subúrbio acham a medida prematura e uma provocação’.

Nova força

A imprensa européia acompanhou com grande interesse os acontecimentos nos subúrbios de Paris. Todos temem um contágio. ‘O outono francês pode ser o prelúdio de um inverno europeu’, advertiu o diário espanhol La Vanguardia. Romano Prodi, ex-presidente da Comissão Européia, declarou que os italianos ‘não devem pensar que são muito diferentes, a Itália tem os piores subúrbios da Europa’.

No dia seguinte em que os militantes do Partido Socialista votaram para definir sob que liderança o partido vai enfrentar as eleições presidenciais de 2007, o diário Libération circulou (quinta-feira, 10/11) com um suplemento especial intitulado ’30 idéias para despertar a esquerda’. Uma das principais matérias intitulava-se ‘A esquerda européia procura sua voz’. Historiadores, cientistas políticos, políticos, economistas e jornalistas da França e do mundo inteiro debatem nas 56 páginas do suplemento os impasses e as possíveis saídas para a esquerda.

Num artigo sob o título ‘Eles entraram na política’, no Le Monde de sexta-feira (11/11), a historiadora Françoise Blum saudou o nascimento de uma nova força política representada por esses jovens do subúrbio. Qual seria o projeto político deles?

‘A luta contra o desemprego, a precariedade… Bravo a todos os que, graças ao desprezo, ajudaram a fazer emergir uma nova força coletiva. E numa França perdida nas querelas de grupos políticos e nos seus medos do futuro, não é uma grande chance?’

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Jornalista