Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

José Queirós

‘Finalmente. Foi preciso estar em Lisboa um professor de jornalismo norte-americano, com currículo estabelecido em técnicas de contagem de multidões, para pela primeira vez se fazer no nosso país o que a imprensa portuguesa há muito deve aos seus leitores: uma estimativa independente do número de participantes em manifestações ou concentrações com relevo social e político.

No passado dia 6, uma multidão de manifestantes convocados pela Frente Comum de Sindicatos da Administração Pública desfilou em Lisboa, entre o Marquês de Pombal e os Restauradores, em protesto contra os cortes salariais e outras medidas de austeridade anunciadas pelo Governo e apoiadas pelo principal partido da oposição. E que multidão foi essa? 100.000 pessoas, disseram os organizadores, e repetiu grande parte da comunicação social, participaram na marcha, descrita como uma espécie de ensaio de mobilização para a greve geral marcada para o próximo dia 24.

Ao contrário do que aconteceu em ocasiões semelhantes, desta vez não se conheceram estimativas da polícia. Em contrapartida, uma equipa dirigida por Steve Doig, professor da Universidade do Arizona actualmente a leccionar um mestrado de jornalismo na Universidade Nova de Lisboa, saiu para o terreno para fazer o que nenhum jornal fizera antes: contar os manifestantes. Não mobilizou para isso grandes meios: alguns dos seus alunos fizeram contagens ao longo do percurso da marcha, algumas fotografias foram feitas a partir de um ponto elevado na zona dos Restauradores e foi medido o espaço em que decorreu o comício final. Resultado: uma estimativa de 8.000 a 10.000 participantes no desfile, e cerca de 5.000 concentrados nos Restauradores.

Não creio que seja possível, depois desta experiência, que um jornal independente continue a ignorar as suas responsabilidades informativas e se limite a servir de eco preguiçoso aos números avançados por organizadores de manifestações ou por fontes oficiais. Ou, no caso das greves, por porta-vozes sindicais, patronais ou governamentais, todos partes interessadas, ainda que antagónicas, na difusão dos números (recordo que a greve da função pública de Março passado foi noticiada neste jornal como tendo tido uma adesão ‘entre os 13 e os 80 por cento’, uma ‘informação’ disparatada resultante da mera contraposição dos números fornecidos pelo Governo e pelos sindicatos).

Dir-se-á que o que mais conta, numa manifestação, não é o número de participantes, mas as suas razões e objectivos, e o impacto público, que não depende apenas da sua expressão quantitativa. Mas também se sabe que, no plano da luta sindical e política, os números são uma arma fundamental para organizadores e oponentes, e é por isso que fazem questão de os esgrimir, com as discrepâncias conhecidas. E, ainda que assim não fosse, é dever do jornalismo procurar e transmitir a verdade dos factos. Quando os números são um elemento relevante da notícia — como é obviamente o caso no processo de preparação de uma greve geral —, impõe-se um esforço de rigor na informação. Se a exactidão é inatingível, não o são as estimativas baseadas em métodos sérios e técnicas adequadas e escrutináveis.

O modo como a imprensa diária portuguesa relatou a manifestação do dia 6 não é rigoroso nem sério. Um jornal anunciou, em título e no texto, a presença de 100.000 manifestantes, sem citar qualquer fonte, como se o cálculo decorresse da observação directa do repórter. Outro assumiu a mesma ‘informação’ em antetítulo, embora referindo no texto que a recolhera junto dos organizadores. O PÚBLICO esteve melhor, dedicando uma pequena nota à contagem feita pela equipa da Universidade Nova, e referindo prudentemente ‘milhares de manifestantes’ na abertura da peça que dedicou ao desfile. Ainda assim, adiantava no texto que este ‘terá mobilizado cem mil pessoas, de acordo com dados da organização’ e que ‘a polícia no local [se] recusou a avaliar o número de participantes’. Ter-se-á citado esse número, referindo a fonte, por ser o único disponível. Mas cabe perguntar qual o valor informativo de um dado como esse, em relação ao qual não existia contraditório nem verificação independente. Sobretudo quando se conhece o histórico das enormes diferenças de cálculo entre as partes envolvidas. Definitivamente, este é um hábito que contraria o direito dos leitores a uma informação rigorosa.

Na minha opinião, o que o PÚBLICO deveria ter feito era o que fez a equipa de Steve Doig: ir para a rua contar os manifestantes. Não se pode esperar de um jornal que invista em tal esforço sempre que noticia uma concentração de massas, mas cabe-lhe reconhecer os casos em que o interesse público aconselha que a cobertura informativa de uma acção de contestação política e social devidamente anunciada não deixe de fora esse dado muito relevante que é o da sua expressão numérica.

O método usado pelo perito americano não exige recursos consideráveis, mas poderá objectar-se que não é suficientemente fiável. Colocar alguns voluntários a ‘contar cabeças’ na rua (mesmo tratando-se de um desfile lento como costumam ser estes) não garante certamente resultados exactos. Mas o conjunto das técnicas utilizadas — contagens independentes em diferentes locais de passagem da marcha, durante períodos de tempo definidos, cronometragem do desfile, cálculo da densidade da concentração de pessoas através de fotografias feitas de cima e da medição dos espaços ocupados, e métodos estudados para a aferição e cruzamento de todos estes dados — é sem dúvida melhor que as conhecidas avaliações ‘a olho’ ou os cálculos não escrutináveis, assegurando estimativas mais dignas de crédito.

Na verdade, estas técnicas representam um processo bastante artesanal quando comparado com as que já estão a ser experimentadas em outros países, em boa parte devido à pressão dos media e dos seus consumidores. A análise em computador de imagens de alta resolução, obtidas por fotografia aérea convencional, por satélite ou até por câmaras instaladas em balões (mais móveis e mais próximos do solo), recorrendo a grelhas que dividem a área de uma concentração em múltiplas unidades de superfície, para cada uma das quais é estabelecida a respectiva densidade, permite atingir resultados cada vez mais credíveis. Por exemplo, nas recentes concentrações cívicas convocadas para Washington por vedetas da televisão conotadas com a direita (Glenn Beck, com o apoio do Tea Party) e a esquerda (o comediante Jon Stewart), a CBS News recorreu a duas estimativas independentes baseadas neste tipo de técnicas, embora com algumas diferenças metodológicas, e chegou a resultados muito semelhantes, sem variação estatística assinalável.

Técnicas baseadas na contagem directa de pessoas, apoiadas por gravações em vídeo, mas usando metodologias sofisticadas que permitem diminuir consideravelmente margens de erro, têm vindo a ser pesquisadas e experimentadas nos últimos anos pela Universidade de Hong-Kong. E já produziram um resultado interessante: quando a equipa académica decidiu anunciar que iria ‘contar cabeças’ numa grande manifestação, os números avançados pelos organizadores e pela polícia, tradicionalmente separados por um abismo aritmético, aproximaram-se de forma inédita. Quando voltou a fazê-lo sem aviso prévio, regressou a enorme discrepância entre os cálculos de uns e de outros. Já em Taiwan — por motivos que não têm a ver com protestos de rua, mas com a segurança pública (por exemplo as grandes concentrações em estações ferroviárias nos dias festivos) — é da inovação tecnológica no domínio da análise de imagens por computadores que têm surgido maiores progressos na contagem de multidões.

Alguns dos que me lêem estranharão talvez que se ocupe este espaço a discutir a importância de saber quantos milhares a mais ou a menos se juntaram num determinado protesto, quando o que importará é conhecer as causas (e os possíveis efeitos) desse protesto. A isso responderei que acções de rua como a do passado dia 6 são matéria de interesse público, que a sua expressão quantitativa é relevante, e que é dever do bom jornalismo procurar a verdade. E acrescentarei que, apesar da referência feita às novas tecnologias existentes, processos mais artesanais e simples de executar serão já um passo importante para romper com o jornalismo conformista que troca o dever da investigação independente pela difusão de ‘informações’ em que nem sequer acredita. Foi essa a lição dada em Lisboa pelo professor Doig, que não terá recebido por acaso, entre outros galardões, um prémio Pulitzer na modalidade de serviço público.

Uma nota final para lembrar que, no próximo dia 24, data da anunciada greve geral, seremos provavelmente confrontados com os tradicionais números contraditórios sobre a adesão ao protesto. Sem formas de avaliação independente, e conhecendo-se os precedentes, muito poucos darão crédito a quaisquer desses números, venham eles dos sindicatos ou do Governo. Seria uma excelente ocasião para o jornalismo romper com velhos e maus hábitos, e ganhar credibilidade.

Claro que uma greve não é um desfile. Não se apuram adesões saindo à rua a ‘contar cabeças’. Mas o desafio informativo é da mesma natureza, e todos os progressos possíveis seriam bem-vindos. Amostras sectoriais de informação — apurada com rigor e independência, ainda que em poucos lugares, e contraposta à que for dada pelas partes interessadas — ajudariam a dissipar mentiras e habilidades estatísticas e poderiam vir a desencorajar os que têm poucos escrúpulos em dizer a verdade aos cidadãos. Uma investigação que desvendasse métodos e critérios de contagem praticados por sindicatos, empresas ou ministérios seria igualmente de interesse público.’