Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

José Queirós

‘Domingo, 21 de Novembro. O PÚBLICO dava destaque ao rescaldo da cimeira da NATO em Lisboa, incluindo uma reportagem das manifestações de protesto ocorridas na véspera. Os leitores estarão recordados de que muito se especulou sobre a possibilidade de se registarem actos de violência, mas afinal ‘tudo correu pacificamente’, como constatava o editorial desse dia.

O jornal já o previra. Paulo Moura, o jornalista encarregado de investigar, antes da cimeira, a probabilidade de se registarem incidentes violentos, como os que marcaram cimeiras semelhantes em outros países, chegara à conclusão de que tal não iria acontecer. ‘A maioria dos elementos dos grupos que têm a opção da violência decidiu não vir a Portugal, principalmente por falta de meios financeiros. E os elementos portugueses dessa tendência, por serem poucos e mal organizados (…), decidiram não actuar’ — explica o repórter, cuja investigação permitiu ao jornal anunciar, em título da edição de 19/11, que ‘toda a desobediência será pacífica’.

Foi o que aconteceu, como ele próprio pôde testemunhar nas ruas da capital no dia seguinte. Ainda assim, e referindo-se à ‘terceira manifestação’ que desfilou em Lisboa (atrás das que identificou com o PCP e o BE), e que descreveu como integrada por ‘pacifistas, anticapitalistas, anarquistas, libertários, idealistas sem ideário’, Paulo Moura viria a afirmar, na reportagem publicada no domingo: ‘Entre eles, estão elementos cujo objectivo era de facto provocar a violência’. O seu ‘plano’, escreveu, ‘era espalharem-se na multidão e começarem a provocar os polícias, na esperança de que estes ripostassem indiscriminadamente contra a manifestação’. E comentava, antes de sugerir que tal plano fora frustrado pelo facto de a PSP ter cercado e isolado esses manifestantes: ‘A polícia a carregar sobre os velhos militantes do PCP era provavelmente o sonho mais selvagem dos elementos anarquistas’.

O leitor Daniel Nicola protestou contra estas frases. Questionou qual a fonte que permitira escrever que os ‘anarquistas’ pretendiam ‘de facto’ provocar a violência. A referência ao seu ‘sonho mais selvagem’ levou-o a perguntar: ‘[O repórter] inventou? Supôs? Interpreta sonhos? Foi informado? Por quem?’. E conclui que o que leu no PÚBLICO ‘não foi uma reportagem, foi todo um artigo de opinião’, marcado por ‘ideologia’ e ‘preconceito’.

Paulo Moura responde a esta críticas num longo depoimento que me enviou e pode ser consultado em http://blogs.publico.pt/provedor. ‘Quem me deu estas informações’ — diz, sobre o alegado ‘plano’ para provocar violência —, ‘são pessoas que conheço há anos (…). Conheço as suas actividades, sei que já viajaram para outros países para participarem em acções violentas contra a polícia durante a realização de cimeiras (…). Não tenho portanto razões para duvidar da autenticidade das informações que me confiaram. Fizeram-no, contudo, mediante a promessa de que não revelaria as suas identidades’.

Admitindo ter tido dúvidas em escrever, nessas condições, que ‘alguns elementos pretendiam usar a violência’, até porque esta não existiu e tais ‘intenções’ lhe terão sido comunicadas ao abrigo do anonimato, o jornalista contrapõe que ‘não houve violência, mas poderia ter havido’, e considera que ‘informar os leitores sobre estes planos por parte de alguns activistas’ foi útil para explicar ‘a atitude de força da polícia’, que ‘foi de facto anormal, ao circunscrever parte dos manifestantes’. Admite, ainda, que ‘tenha sido desnecessária ou até deselegante’ a referência aos ‘sonhos’ dos ‘anarquistas’, mas a expressão usada, insiste, ‘corresponde ao que eles me disseram’.

Afirmando que não pôde confirmar na altura a explicação recebida dos próprios para a não concretização do alegado ‘plano’ de provocação de confrontos (a de que ‘a polícia tinha sido informada das suas intenções’), Paulo Moura conclui que lhe restava ‘deixar a informação de que alguns anarquistas tinham de facto planos de usar a violência’, como ‘pista de interpretação para os leitores’.

A reportagem é um género jornalístico que se caracteriza pela liberdade narrativa e pelo espaço concedido à subjectividade de quem relata, mas continua a ser uma peça de informação, que deve assentar, como ditam as regras deste jornal, ‘no terreno preferencial dos factos e da sua observação directa’. A esta luz, a referência, afirmada no texto como uma certeza, a planos e intenções que não se concretizaram, atribuídas genericamente a anónimos, e sem apoio em factos ou declarações que as corroborassem (dos próprios ou de uma parte contrária), é questionável e penso que deveria ter sido evitada.

Por outro lado, a ausência de actos violentos em torno da cimeira de Lisboa seria sempre, em si mesma, um elemento noticioso relevante, face aos precedentes conhecidos e ao clima securitário criado. O trabalho assinado por Paulo Moura na véspera das manifestações — esse sim, com citações de fontes nomeadas — contribuíra para que se antecipasse um cenário de protestos sem confrontos nem destruições.

Se o mesmo jornalista teve conhecimento de que, ainda assim, existiu um ‘plano’ para desestabilizar uma manifestação pacífica num dia em que Lisboa estava sob os olhos do mundo, e atribui o seu fracasso a uma actuação ‘anormal’ da polícia, então valeria a pena terem sido averiguadas as razões de tal actuação. ‘Não consegui essas explicações na altura, mas tenciono em breve tentar obtê-las, para poder compreender o que se passou’, diz o repórter do PÚBLICO.

A alegada cooperação, não assumida publicamente, entre os organizadores da principal manifestação e as forças policiais, com vista a conter eventuais adeptos da violência, tem sido referida como explicação para a excepção lisboeta à regra dos confrontos que têm rodeado cimeiras como esta. Confirmá-lo, ou não, ajudaria certamente a ‘compreender [e noticiar] o que se passou’.

Luxo, crise e oportunidade

Há três semanas os compradores do PÚBLICO receberam, com o seu jornal de domingo, mais uma edição do suplemento anual Primus, dedicado ao universo do luxo e da moda. A chamada para o caderno de 64 páginas ocupava uma parte destacada da capa do jornal, com o sugestivo título ‘Gastar é uma arte’.

O conteúdo e a oportunidade do suplemento desagradaram ao leitor Rui Martins, de Lisboa, que censura a iniciativa: ‘Não sei o que mais choca neste vosso suplemento (…). Se a insensível falta de sentido de oportunidade, em vir falar da ‘arte de bem gastar’ num país que se senta à beira do precipício da bancarrota; se o vazio de ideias associado à noção de ‘sonhar em tempo de crise’: jóias, relógios e carros de luxo’.

‘A fuga à neurose deprimente do nosso estado económico’, escreve este leitor, devia fazer-se pela criatividade e capacidade de gerar riqueza. Mas não: a fórmula da directora do PÚBLICO é o consumo, e sobretudo do que vier de fora. (…). Não há um conceito, um esboço crítico, uma perspectiva diferenciadora que nos faça acreditar na razão de existir deste suplemento. A vossa ideia de luxo, lamento dizê-lo, é uma pobreza’.

A directora do PÚBLICO não pensa assim. Acredita que, ‘sem preconceitos, se pode fazer jornalismo bom e rigoroso nas áreas da moda e boa vida’, recorda que ‘este tipo de suplemento existe em muitos jornais de referência internacionais’ e mostra satisfação pela ‘qualidade invulgar’ da revista, cuja elaboração foi este ano, pela primeira vez, assegurada por jornalistas do PÚBLICO, e não por uma equipa externa.

Segundo Bárbara Reis, ‘o factor crise foi discutido na redacção, claro – não podíamos deixar de ser sensíveis a ele -, mas acreditamos que a crise não deve eliminar a nossa capacidade de sonhar e sabemos que, com ou sem crise, é ingénuo pensar que o consumo de luxo não existe ou que, se existe, o devemos ignorar’. ‘O PÚBLICO’, argumenta, é um jornal que reflecte a complexidade do mundo’ e nela ‘cabem a moda, os hotéis de luxo e os diamantes’, tal como os outros temas escolhidos para a capa da mesma edição: uma entrevista ao biógrafo de Obama, a polémica nacional sobre uma ‘grande coligaçāo’ governamental e ainda ‘a qualidade do ar no meio urbano, a crise política francesa, a violência doméstica e o futuro do porto de Sines’.

Eu diria que cada um sonha com o que quer e lê o que lhe interessa. Se a alguns leitores incomoda a exibição do luxo (em tempos de miséria ou não), outros tirarão proveito, mais prático ou mais onírico, de um relance pelo mundo do glamour e dos prazeres milionários. À maioria interessará sobretudo o equilíbrio editorial do jornal — e esse não vejo que seja afectado por uma incursão anual na área dos consumos menos acessíveis ao comum dos mortais, ainda que essa não seja, certamente, a única ideia possível de luxo. Parece-me mais discutível o facto de o espaço dedicado ao Primus na primeira página de 14 de Novembro ter contribuído para remeter para o rodapé a chamada para o oportuno tema de destaque do jornal (‘Chineses fazem renascer o sonho de Sines’), que, conforme explica Bárbara Reis, foi ‘uma das principais apostas desse domingo (e do planeamento de duas semanas)’.

Resta acrescentar, a bem da transparência, que suplementos como este não existem por acaso. Servem também para atrair um segmento relevante (o dos produtos de luxo) das receitas publicitárias indispensáveis a esse sonho mais quotidiano que é o de proporcionar a todos os leitores, na diversidade dos seus múltiplos interesses, um produto jornalístico de qualidade. Sendo este suplemento agora assegurado pela redacção do jornal, o que valerá a pena avaliar é a sua qualidade editorial. Se o PÚBLICO conta com jornalistas disponíveis para aplicar a estes temas os seus talentos profissionais, a fasquia da exigência sobe e cabe aos leitores avaliar o resultado.’