Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

José Queiroz

“Não é possível trazer a este espaço todas as mensagens dos leitores que expressam o seu desagrado pela frequência dos erros de escrita nas páginas do jornal. Há poucos meses dediquei ao tema uma série de crónicas e só posso esperar que venham a dar resultados visíveis algumas medidas entretanto anunciadas pela direcção do PÚBLICO, destinadas a sensibilizar a redacção para uma maior atenção, pelo menos, ao tipo de erros que a experiência mostra serem os mais repetidos.

Não ocultei, na altura, que não acredito em milagres neste domínio numa empresa jornalística que comprimiu drasticamente a sua equipa de revisores. Nem na ideia de que soluções tecnológicas de correcção de texto, ainda que úteis, possam substituir, em aspectos essenciais, o trabalho de profissionais qualificados. Defendi, por outro lado, que não deve ser assacada aos signatários das peças jornalísticas manchadas por erros de escrita a maior responsabilidade por gralhas e deficiências no uso da língua que deveriam ser detectadas pelos responsáveis editoriais que, por vezes (em títulos, entradas, chamadas de capa), serão até os seus autores directos.

Acredito que só a pressão dos leitores poderá contribuir para uma maior consciência da erosão que a frequência dos dislates gramaticais (e outros) provoca no crédito e na imagem de um jornal de qualidade. E para acelerar as medidas que permitam, pelo menos, atenuar significativamente a gravidade do problema. Por isso, mesmo não desejando fazer destas crónicas uma câmara de eco de todos os exemplos de mau português de que muitos leitores justificadamente se queixam, penso que valerá a pena citar algumas das reclamações recebidas nos últimos dias, esperando que possam contribuir para uma reflexão necessária.

A leitora Isa Torga manifestou a sua ‘imensa insatisfação’ por encontrar numa pequena notícia publicada no último domingo na edição on line (‘Mineiros chilenos processam Estado…’) nada menos do que cinco erros em oito curtos parágrafos. E tem razão. Se num caso ou outro se tratará de gralhas de digitação, não faltam os exemplos clássicos da falta de concordância, do erro de ortografia e até da possível interiorização das normas do controverso acordo ortográfico — que o PÚBLICO não adoptou —, com a queda de uma consoante muda. É muito para uma peça de pouco mais de 300 palavras.

Poderia pensar-se que se tratou apenas de um exemplo do evidente (e, a meu ver, errado) menor investimento de edição nas notícias da plataforma on line, nomeadamente no que toca a peças de produção externa que são divulgadas com a marca do PÚBLICO sem serem sujeitas, aparentemente, a uma revisão capaz (neste caso, a notícia não era assinada, mas fazia referência a informações oriundas de uma agência estrangeira). Contudo, a leitura da mesma peça, publicada na edição impressa do dia seguinte (18.07) e igualmente não assinada, torna claro que o problema não fica por aí. Uma das gralhas que aparecia no Público Online desaparecera, o que indica que a notícia foi revista, mas os quatro erros restantes permaneciam, o que mostra que foi mal revista.

Dias antes, fora a vez de o leitor Valdemar Andrade — que se identifica como um ‘leitor/comprador do PÚBLICO desde o início’, para quem se tem ‘alterado, para pior, a qualidade do uso da nossa língua’ no jornal — referir o ‘incómodo’ sentido com a leitura da edição do passado dia 14, onde encontrou coisas como estas: ‘Assange, de cabelo cortado, mantia-se impávido’ (notícia sobre a presença do fundador da Wikileaks numa audiência judicial no Reino Unido), ou ‘Tendo ocupado a casa deste (…) e obrigado-o a mendigar’ (relato de um caso em apreciação num tribunal do Porto).

Na semana anterior (P2 de 7 de Julho), a toda a largura da página 7 (‘Cultura’…), alguém se lembrou de escrever e alguém permitiu que fosse impresso o título ‘Prémio para o percurssionista Pedro Carneiro’. A leitora Alda Nobre supõe, possivelmente com razão, que na origem do erro estará o facto de este já ser relativamente comum em certo ‘português’ falado e escrito. Mas engana-se, provavelmente, ao responsabilizar pelo disparate a jornalista que assinou o texto, no qual a palavra ‘percussionista’ surge várias vezes, e sempre correctamente grafada.

Para lá das agressões à língua, deixo aqui dois exemplos recentes de erros que não deveriam sobreviver a uma edição cuidada. Na edição de 16 de Julho, a troca de um ‘6’ por um ‘3’ deu aos leitores uma informação errada, na última página, sobre os números sorteados no Euromilhões. O leitor José P. Costa queixou-se da falha em termos suaves (‘uma imprecisão’), mas a verdade é que este é o tipo de erro que muitos compradores do jornal tenderão a considerar indesculpável. E com razão: não só pela natureza da informação em causa, em que não pode haver lugar a enganos, como pelo facto de ter já sucedido com a divulgação de outros resultados de jogos sociais. Qualquer pessoa se pode enganar a transcrever uma série de números à hora de fecho do jornal, mas não se entende que não exista (ou que funcione mal) uma rotina simples de ter dois pares de olhos diferentes a verificar os números dos sorteios. Neste caso, o erro não foi corrigido na edição seguinte, como seria exigível. Curiosamente, a informação correcta sobre o sorteio (sem qualquer indicação de ter sido alterada) figurava desde as 21h07 do dia 15 na edição on line. Enganam-se os que olhem para estas falhas como minudências. É também pelo assegurar ou não das condições que as evitem que se pode medir o respeito de um jornal pelos seus leitores.

Outro desafio ao rigor informativo, obrigando a uma atenção redobrada nas horas de fecho, é a dificuldade que os constrangimentos gráficos colocam à elaboração de títulos, especialmente os que encabeçam notícias paginadas a uma só coluna, como acontece geralmente nas chamadas de capa. Creio que só esse factor, acompanhado de um facilitismo censurável, terá tornado possível colocar na primeira página da edição do passado dia 9 o título ‘PJ detém três suspeitos com ligações ao IRA’, quando o texto da chamada se refere a ‘grupos dissidentes do IRA’. O título da notícia sobre a operação policial, na página 11, evita o erro (‘PJ deteve três suspeitos com ligações a dissidentes do IRA’), mas este repete-se na página 23 da edição seguinte (10.07), onde em título a uma coluna se volta a chamar ‘suspeitos de ligação ao IRA’ aos que precisamente serão suspeitos de pertencer a grupos que se afastaram daquela organização nacionalista irlandesa desde que esta pôs fim à opção pela violência.

Voltando ao início, ao peso dos erros de escrita em notícias do PÚBLICO, confesso temer que também estes sejam vistos como ‘minudências’ por muitos que os considerarão secundários no quadro de um esforço diário para produzir informação de qualidade. Por isso deixo aqui a interrogação com que a primeira leitora citada, Isa Torga, concluía a sua mensagem: ‘Pela qualidade do que escrevemos, do que lemos e do que exigimos aos nossos garotos, porque não darmos o exemplo cuidando das peças que disponibilizamos ao público em geral?’ É o que deverá esperar-se, evidentemente, deste jornal.

Elevando a fasquia

O anúncio, nos últimos dias, do projecto Público Mais — um fundo financiado por seis grandes empresas, que permitirá ao PÚBLICO investir em trabalhos jornalísticos no domínio da grande reportagem e em áreas temáticas essenciais, para cujo tratamento em profundidade escasseiam os meios — constitui, na minha opinião, uma excelente notícia para os leitores.

Com esta solução inovadora na imprensa portuguesa, que recorre ao mecenato para poder garantir, num mercado estreito como o nosso, as missões próprias do jornalismo de referência, o PÚBLICO abre novas e promissoras expectativas na sua afirmação como protagonista, em Portugal, da imprensa diária de qualidade. O que deve ser sublinhado numa época em que as restrições financeiras contribuem para que as tentações de deriva tablóide, com o seu cortejo de superficialidade, sensacionalismo e devassa da intimidade das pessoas, vão fazendo o seu caminho de habituação pública à mediocridade, mesmo quando — como acaba de suceder na Grã-Bretanha — são expostas em toda a nudez da sua natureza mercenária.

É de louvar a atitude inteligente e o espírito de cidadania dos empresários que se dispuseram a este primeiro passo, mostrando-se conscientes de que o apoio à imprensa independente e à sua credibilidade não é compatível com qualquer tipo de interferência no agendamento e nos conteúdos dos trabalhos jornalísticos que ajudarão a viabilizar. E seria bom ver este projecto alargado, no futuro, ao jornalismo de investigação em geral, actualmente tão ameaçado pela carência de meios humanos e financeiros, mas de utilidade cívica cada vez mais evidente.

Como provedor do leitor, considero que a direcção do PÚBLICO está de parabéns pela iniciativa agora anunciada. E faço votos de que os frutos do Público Mais venham a confirmar que de parabéns estamos também todos os que diariamente lemos o jornal.”