Sunday, 05 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Mexidas drásticas, milhões em jogo

Pela primeira vez na história recente do telejornalismo americano, uma âncora majoritária de uma rede majoritária pode estar trocando a atual casa por uma operação concorrente. Katie Couric, apresentadora da tradicional Today, revista matinal da NBC, está sendo sondada pela rede CBS para assumir o cargo de apresentadora e editora-chefe do telejornal CBS Evening News. O noticiário vem sendo apresentado interinamente por Bob Schieffer desde a saída voluntária de Dan Rather em março deste ano, em função do escândalo envolvendo documentos falsos em reportagem sobre o presidente George W. Bush para o jornalístico 60 Minutes II, da mesma rede.


O assunto da sucessão no telejornal da CBS vem movimentando as discussões nas publicações especializadas nos Estados Unidos. O telejornal, há pelo menos 10 anos, é o último colocado na medição diária de audiência, quando concorre com o NBC Nightly News e ABC World News Tonight. Após a saída de Rather do CBS Evening News, a rede decidiu lançar um plano para revitalizar o telejornal e torna-lo atraente para um público mais jovem, já que a média de idade dos telespectadores do telejornal vinha sendo a de 60 anos.


Leslie Moonves, presidente da CBS, externou publicamente a sua idéia de rejuvenescer o telejornal e acabar com o ‘complexo de voz de deus’, pelo qual o âncora se coloca diante do público como se soubesse tudo e de uma maneira incontestável. Uma das hipóteses apresentadas por Moonves foi a de tornar o CBS Evening News um produto apresentado por um grupo de jornalistas experientes, porém mais jovens. Após o nome de Couric ter entrado no circuito, a idéia de tornar o noticiário multiapresentado não tem sido mais apontada como saída. O sucesso da jornalista há 15 anos nas manhãs da NBC e a sua empatia com todas as faixas de público seriam as maiores razões para tê-la no comando do principal noticiário da CBS e recuperar a combalida audiência.


Mudanças e pressões


O contrato de Couric com a NBC vai até março, e estima-se que ela deverá cumpri-lo até o fim, anunciando somente então a sua decisão de mudar de rede ou seguir no Today. ‘Se a Katie estiver por sair e encarar um grande desafio que ela não puder recusar, fico muito feliz por ela’, disse o colega de bancada Matt Lauer, da NBC, à Associated Press. ‘Se ela mudar, que seja pelas razões certas e não por qualquer insatisfação com a NBC’, acrescentou. ‘Seria uma grande perda.’ Especula-se no mercado que Katie Couric esteja ganhando cerca de 60 milhões de dólares por este último contrato de quatro anos e meio com a NBC.


Este negócio é considerado o mais lucrativo do telejornalismo americano. Apesar de todas as notícias divulgadas sobre uma troca, o presidente da NBC News (e chefe de Katie Couric), Steve Capus, disse ao jornal Los Angeles Times que considera o assunto ‘prematuro’. Entretanto, confirma que uma possível saída da apresentadora estaria sendo aguardada. ‘Algum dia, em algum ponto do futuro, ela sentiria que seria hora de sair do Today. Apenas não sei quando isso aconteceria.’ Leslie Moonves já havia tentado levar Katie para a CBS logo após a saída de Dan Rather, em março.


Esta nova busca – considerada ‘incontestável’ – por Katie Couric tem sido planejada e executada pelo recém-apontado presidente da divisão de jornalismo da CBS (CBS News) Sean McManus, que assumiu o cargo após a saída de Andrew Heyward, outra conseqüência a longo prazo da exibição da reportagem sobre Bush no 60 Minutes II – a mais imediata foi o cancelamento do programa. McManus assumiu a função no começo de novembro, acumulando-a com a de presidente da divisão de esportes (CBS Sports). E assumiu sabendo da necessidade de reformular o jornalismo da CBS e as pressões disso decorrentes. Como presidente da CBS Sports desde 1996, McManus reconduziu a programação esportiva da rede ao primeiro lugar na preferência dos americanos, transmitindo eventos como futebol americano, tênis, golfe e basquete. Era praticamente consensual que McManus viesse a tomar conta da tumultuada divisão de jornalismo.


‘Trabalho exemplar’


Em recente entrevista à revista Variety, o atual apresentador do CBS Evening News aprovou a idéia de ter Couric como responsável permanente pelo telejornal. ‘Espero que ele (Sean McManus) consiga trazer a Katie. Ela seria uma grande aquisição para a CBS News’, disse Schieffer. ‘Este cara é incansável, vai atrás de todos que puder trazer, pois entende que os departamentos são montados ao redor de pessoas.’


A eventual contratação de Couric à CBS não foi a primeira medida prática de Sean McManus na presidência do jornalismo. Rome Hartman, durante muitos anos diretor do jornalístico 60 Minutes (apresentado aos domingos à noite; o cancelado 60 Minutes II ia ao ar às quartas-feiras) e um dos maiores responsáveis pelo grande sucesso do programa ao longo dos anos, já é o diretor do CBS Evening News. Para que se tenha uma idéia, 60 Minutes atingiu a marca de 20 milhões de telespectadores há duas semanas, a maior média em cinco anos, de acordo com a Variety.


Na visão de McManus, não haveria outro nome mais aceitável para assumir a direção do CBS Evening News. ‘Eu sei que todos são familiarizados com o trabalho exemplar que Rome vinha fazendo no 60 Minutes e acredito firmemente que sua experiência em produção, integridade jornalística e visão únicas o qualificam para levar o Evening News ao próximo nível’, disse McManus em e-mail aos funcionários da CBS News e publicado no blog oficial do jornalismo da CBS, Public Eye. Ainda de acordo com a Variety, neste ano o CBS Evening News atingiu uma média de 7.42 milhões de telespectadores diários nacionalmente, contra 8.67 milhões do ABC World News Tonight e 9.79 do NBC Nightly News. E considere nestes 7.42 milhões um acréscimo de 260 mil telespectadores desde que Bob Schieffer assumiu o comando em março.


‘Um grande âncora’


Se o presente não glorifica o CBS Evening News, o passado é de êxitos. Nascido em 1948 com Douglas Edwards no comando, ganhou a partir de 1962 sua maior assinatura: o âncora Walter Cronkite, que se tornou referência para jornalismo de TV nos Estados Unidos. Foi até contemplado com o título de ‘homem mais confiável na América’ pela atuação diária no telejornal e em coberturas de impacto, como a Guerra do Vietnã e a queda do presidente Richard Nixon. No período em que teve Cronkite à frente, CBS Evening News sagrou-se no primeiro lugar e inaugurou o tradicional formato de telejornal com meia hora de duração, que viria a ser modelo para os concorrentes.


Cronkite permaneceu como âncora principal da CBS até ser substituído em 1981 por Dan Rather. Várias razões foram expostas para a saída de premiado Cronkite, mas a predominante é a política da CBS de aposentar todos os funcionários aos 65 anos. Além de deixar o telejornal diário, teve sua participação nos demais jornalísticos drasticamente reduzida. A intenção da rede com isso era permitir que o sucessor Dan Rather se fixasse diante do público. Apesar do clima tenso nos bastidores, Cronkite teve uma despedida amena no último dia à frente do Evening News. No encerramento do telejornal naquele 6 de março, disse:




Este foi um momento que planejei longamente, mas que invariavelmente causa uma certa tristeza. Afinal, por quase duas décadas nos encontramos deste jeito durante as noites e sentirei saudades disto. Mas aqueles que esperaram muito desta despedida, acho que esperaram demais. Isto nada mais é do que uma transição. Uma passada de bastão. Um grande comunicador, Douglas Edwards, me antecedeu neste trabalho e outro, Dan Rather, me sucederá. De qualquer maneira, a pessoa que senta aqui (no estúdio) é apenas a mais conspícua de uma grande equipe de jornalistas: redatores, repórteres, editores, produtores e nada disso mudará. Além do mais, eu não me afastarei totalmente. Voltarei de tempos em tempos com reportagens especiais e documentários. Um grande âncora, como se vê, não desaparece. Fica voltando toda hora.


Reações extravagantes


Dan Rather conseguiu manter o telejornal em primeiro lugar até que um desmonte parcial do jornalismo da CBS ocorreu em 1987. O fundador original da rede, William Paley, decidiu vendê-la em 1986 após anos sofrendo com problemas de mau gerenciamento e prejuízos decorrentes. Então, a CBS foi comprada pelo empresário Laurence Tisch – famoso nos Estados Unidos por ‘nivelar por baixo’ suas operações. No ano seguinte, uma queda drástica no mercado de ações fez Tisch cortar 30 milhões da verba anual da CBS News, bem como demitir 230 funcionários do jornalismo e fechar sucursais ao redor do mundo. Com a queda na estrutura e, conseqüentemente, na qualidade do jornalismo, a CBS viu seu principal e emblemático telejornal despencar para terceiro lugar.


À época, Dan Rather publicou artigo no New York Times fazendo crítica aberta à medida antijornalismo adotada pela nova cúpula:




Nós levamos muito a sério o nosso compromisso com o público. É por isso que somos jornalistas em primeiro lugar. O nosso novo presidente, Laurence Tisch, nos disse quando chegou que queria que fôssemos os melhores. E nós queremos nada mais do que cumprir esta tarefa. Ironicamente, ele vem fazendo com que isto esteja entre difícil e impossível. Eu já cheguei a dizer antes que não tenho intenção nenhuma em participar da derrocada da CBS. Mas será que os novos donos e diretores da CBS enxergam o jornalismo como um comprometimento? Ou apenas como negócio?


Folclórico, Dan Rather foi escolhido para ser o sucessor de Walter Cronkite em 1981 por já ser repórter da CBS desde 1962 e âncora do semanal 60 Minutes desde 1975. Teve comportamentos ou reações tão extravagantes como o do artigo acima. Nos seus 24 anos como âncora do CBS Evening News, acostumou o telespectador a comportamentos inusitados. Um exemplo ocorreu no auge da crise com Laurence Tisch, em 1987. O fim de um jogo de tênis transmitido pela CBS estava atrasado. Furioso, Rather deixou a bancada do telejornal. O jogo atrasou apenas dois minutos e a CBS exibiu um slide por outros sete até que Rather fosse encontrado nos corredores. Protagonizou matéria sobre os efeitos da heroína após ter consumido a droga sob supervisão policial e também fez intervenções ao vivo agarrado a um poste na Flórida durante a passagem de um furacão, anos atrás. Em setembro de 2004, pediu formalmente desculpas no ar pela reportagem errônea envolvendo o nome do presidente George W. Bush.


Lance de marketing


Anos depois da troca de comando de 1986, e com Laurence Tisch já longe da presidência da rede, o Evening News conseguiu voltar ao primeiro lugar, mas sem a invencibilidade de outrora. Desde meados da década de 90, o telejornal nunca mais chegou ao primeiro lugar. Coincidentemente ou não, a rede CBS como um todo é a mais assistida pelos americanos – exceto quando se trata de jornalismo. E a força de sucessos como CSI, Everybody Loves Raymond, Big Brother e outros não foi suficiente para ajudar a reerguer o informativo diário até o momento. Jornalismo na CBS, para o grande público, só se for o imbatível 60 Minutes. Na semana do dia 12 de dezembro, os cinco programas mais vistos na televisão americana eram da CBS: CSI, Without a Trace, 60 Minutes e duas edições de Survivor.


Katherine Anne Couric, ou simplesmente Katie, é uma das estampas da televisão matinal americana em seus 48 anos. É co-âncora do tradicional jornalístico Today desde 1991 ao lado de Matt Lauer. Participam também Ann Curry como âncora de notícias e Al Roker com a previsão do tempo. Talvez esta seja a maior decisão de sua vida. Manter o posto de mulher mais assistida nas manhãs americanas ou encarar o desafio de ressuscitar um noticiário com sérias dificuldades de audiência. Katie é elogiada pelos críticos por conduzir entrevistas e reportagens sérias com a mesma desenvoltura com que participa de segmentos de variedades ou culinária. Diante da câmera, passa uma imagem simpática, embora tenha sido noticiado que tem temperamento de prima donna.


Ao longo da carreira, trabalhou na emissora local da NBC em Washington (WRC-TV canal 4) e na CNN. Ironicamente, apesar de projetar características favoráveis para o telespectador, foi banida da CNN quando seu contrato expirou na década de 80. As razões alegadas pelo então presidente, Renee Schonfield, basearam-se no ‘tom de voz alto e estridente’, segundo o site Internet Movie Database. Num lance de marketing da NBC, trocou de lugar com o apresentador Jay Leno: ele ancorou o Today e ela fez as entrevistas do Tonight Show em março de 2003. Se esta simpatia e desenvoltura continuarão na CBS os americanos saberão em março. Na nova rede, além de apresentadora e editora-chefe do CBS Evening News, faria reportagens especiais para o 60 Minutes, da mesma forma que as fez para o Dateline NBC.


Um salvador


‘Tudo o que tenho a dizer é que ainda estou avaliando o que quero fazer e quando quero fazer’, disse a jornalista à revista TV Guide. ‘Sou privilegiada em ter oportunidades. Estou pensando muito nisso e com muita seriedade.’ Especialistas em mídia e televisão apóiam a intenção da CBS em tê-la como âncora principal. Tom Rosenstiel, diretor do Projeto para a Excelência em Jornalismo da Columbia University, de Nova York, acha que o estilo pessoal da apresentadora seria determinante para uma melhora da CBS. ‘Acho que o público quer um novo estilo de âncora, algo mais informal e não tão impositivo’, disse ao jornal Boston Globe. ‘Katie poderia trazer essa diferença estilística para convencer o telespectador.’


Na realidade, a possível contratação de Katie Couric teria duas alternativas. Há pelo menos três anos a CBS vem batalhando com seu jornalístico matinal, Early Show. Em concorrência direta com Today, da NBC, e Good Morning America, da ABC, sempre termina em terceiro lugar na medição geral nacional. Em alguns mercados, despenca mais ainda na audiência. Na possibilidade de a maior estrela do Today deixar o programa, haveria um abalo pelo menos momentâneo no programa, dando assim maior margem à reação do Early Show. Há pelo menos 10 anos seguidos Today é líder absoluto nas manhãs da TV aberta americana, seguido de perto pelo GMA. Quase perdeu a medalha de ouro no primeiro semestre deste ano para o concorrente da ABC. No mês passado, a distância entre os dois programas chegou a apenas 864 mil telespectadores na medição nacional. Um pioneiro da televisão americana, no ar desde 1951, Today sempre foi líder ou esteve numa confortável segunda colocação e ostenta o título de programa mais rentável na TV americana. Já o Early Show (lançado em 1999) amarga uma distância média de 2 milhões de telespectadores até o Good Morning America e mais de 3 milhões até o líder Today, segundo informações do instituto AC Nielsen.


Enquanto a CBS busca um salvador para seu telejornal nacional, a ABC escolhe dois substitutos para a vaga deixada por Peter Jennings, principal âncora da rede, morto em agosto deste ano por um câncer de pulmão. Pela primeira vez em mais de 20 anos, uma dupla de apresentadores comandará o World News Tonight. Os repórteres Bob Woodruff e Elizabeth Vargas assumirão a bancada do telejornal no dia 3 de janeiro. A escolha põe fim a especulações de que o âncora matinal Charles Gibson, do Good Morning America, viria a ser o novo apresentador e editor do noticiário noturno. Gibson vinha participando do rodízio de apresentadores substitutos do WNT desde a morte de Jennings. Âncora do programa matinal desde 1987, Gibson era tido como peça-chave para o sucesso do programa e por estar aproximando a ABC do primeiro lugar na preferência do telespectador na primeira parte da manhã.


Conhecidos do público


Com relação aos novos apresentadores, o presidente da divisão de jornalismo da ABC (ABC News), David Westin, afirma que a opção foi feita com base no perfil multifuncional dos jornalistas. ‘Elizabeth e Bob juntos serão os âncoras desta nova proposta na era digital do World News Tonight. A experiência deles como jornalistas, a familiaridade com o público e o compromisso em captar e transmitir a notícia em qualquer lugar, a qualquer hora e de qualquer modo fazem deles a equipe ideal para nos levar à próxima geração’, disse Westin.


Além das novas caras, o telejornal passará a transmitir uma edição ao vivo para a Costa Oeste dos Estados Unidos, com a devida atualização no noticiário – até hoje, os telejornais americanos eram ao vivo somente para a metade Leste, sendo retransmitidos três horas depois para a Oeste. Uma edição exclusiva para telefones celulares e internet também será produzida, tornando disponíveis as reportagens do telejornal antes mesmo de terem ido ao ar na TV. Jon Banner, diretor do World News Tonight, festeja as mudanças: ‘Estamos revolucionando a maneira de informar no noticiário noturno. O telejornal não será mais confinado às noites, não mais estará limitado à televisão e agora será ao vivo para a Costa Oeste’.


Ambos os âncoras já eram conhecidos do público da ABC. Ele, por ser apresentador do World News Tonight nos fins de semana; ela, por ser co-apresentadora do jornalístico semanal 20/20. Esta não é a primeira vez que o telejornal noturno da ABC terá mais de um apresentador. Lançado em 1965 como ABC Evening News, foi comandado de 1976 a 1978 pela dupla Harry Reasoner e Bárbara Walters. De 1978 a 83, teve três apresentadores: Max Robinson, Frank Reynolds e Peter Jennings, que assumiria no último ano daquele ciclo o comando solo até 2005.

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Jornalista