Saturday, 04 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

O arrastão que levou a nossa inteligência

Fantochada, s. f., porção de fantoches; cena de fantoches; fig., cena burlesca; palhaçada. (Dicionário Online Universal – Texto Editores)

Fantochada é a palavra que um português comum poderia usar para descrever a atuação da comunicação social no episódio conhecido como o ‘arrastão’ da praia de Carcavelos. A notícia, que correu o mundo, certamente provocou arranhões na imagem de Portugal, um país que depende muito das receitas do turismo.
Mas o que aconteceu?

Para o leitor não familiarizado com o assunto, uma breve descrição dos acontecimentos. Ou melhor, dos não-acontecimentos. Tudo ocorreu numa sexta-feira, 10 de junho, feriado que marca o simbólico Dia de Portugal. Os noticiários das três principais redes de televisão de sinal aberto do país – a estatal RTP e as privadas SIC e TVI – tinham como manchete o tal arrastão. Os números eram tão impressionantes quanto delirantes: 500 jovens, com uma sincronia capaz de fazer inveja até aos mais brilhantes estrategistas militares, teriam feito um mega-arrastão, agredindo e roubando pessoas na areia.

Poucos minutos depois a polícia ocupou a praia com um aparato de impor respeito. Os meios de comunicação mandaram os seus repórteres para o local. A televisão começou a emitir flashes ao vivo. Nos estúdios, comentaristas especializados (sociólogos, criminólogos ou antropólogos) teciam as mais inteligentes teorias. Um deles chegou mesmo a anunciar o início de uma nova era na criminalidade do país, a era do arrastão. E destacou a irônica simbologia: tudo isso acontecia no Dia de Portugal. A população, apanhada de surpresa, ficou estarrecida.

Mas qualquer cidadão com dois dedos de testa podia perceber que alguma coisa estava fora de lugar. Não havia fatos.

Imagem poderosa

O que dizer dos jornalistas? Como seria possível profissionais de comunicação caírem na esparrela de noticiar um não-acontecimento? Aliás, o acontecimento foi o próprio circo televisivo que se armou.

Um jornalista tem a obrigação de exercer o elementar exercício do bom senso. O raciocínio é básico. Se há um crime – roubos e agressões – isso pressupõe que haja agressores, vítimas, objetos roubados, motivos, queixas na polícia. Mas a televisão só conseguiu mostrar depoimentos inconsistentes de testemunhas que nada viram. Ou seja, usou e abusou de gente que se deixa seduzir pelo desejo de aparecer na telinha. É o problema de ter que noticiar ao vivo.

As referências ao Brasil eram incontornáveis e Carcavelos foi comparada ao Rio de Janeiro. Um dos repórteres de televisão encontrou um jovem brasileiro na praia e fez uma entrevista. O que ele viu? Nada. Mas admitiu que era triste ver que uma prática comum no Brasil estivesse a ocorrer também em Portugal. O jornalista precisava deste estereótipo para estabelecer o paralelo entre os ‘arrastões’ dos dois países (era mesmo uma forma de justificar a introdução da palavra ‘arrastão’ na semântica da cobertura jornalística).

Por falar em estereótipos, racismo e xenofobia estiveram no centro da questão. É certo que nunca se falou em ‘negros’ (a praia fica perto de zonas habitadas por africanos e descendentes), mas sempre que se falava em ‘roubos’ a foto que aparecia era a de um grupo de jovens negros a correr. Uma imagem poderosa, mas instrumentalizada de forma preconceituosa pelos editores (os jovens estavam a fugir da confusão, com a chegada da polícia).

Cobertura risível

O que restou desse autêntico besteirol jornalístico?

Uma população que, em sua maioria, acredita que houve mesmo um arrastão. Por isso as reações contra os estrangeiros subiram de tom nas camadas menos informadas. O pior é que a extrema-direita se sentiu com legitimidade para sair às ruas de Lisboa numa manifestação claramente xenófoba a pedir um Portugal para os portugueses (excluem os negros nascidos no país, claro). Enquanto isso, os meios de comunicação, que deveriam esclarecer os fatos – e mesmo pedir desculpas aos portugueses por tamanha barrigada – permanecem no silêncio.

Menos mal que algumas pessoas tentam restituir a verdade dos acontecimentos. Uma delas é a jornalista Diana Andringa, que na quinta-feira (30/6) fez uma apresentação pública de um documentário de sua autoria, intitulado Era uma vez um arrastão, na Videoteca de Lisboa. É um exercício demolidor de desconstrução desse pseudoarrastão. E nem foi preciso muito trabalho de investigação, porque foi quase suficiente fazer uma colagem dos noticiários de televisões e jornais.

Todo professor de jornalismo deveria baixar uma cópia desse filme. É um trabalho sério, mas que faz rir. Porque mostra como a cobertura do episódio feita pela comunicação social portuguesa foi ridícula e risível. Uma autêntica fantochada.

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Jornalista, doutorando em Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa, cronista de A Notícia (Joinville, SC)