Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O fim de um sonho jornalístico

Mais por fora e constrangedora não poderia ser a posição da SIP (Sociedade Interamericana de Imprensa), que, reunida no último fim de semana nas limpas e calientes praias de Los Cabos, norte do México, assim concluía um de seus relatórios:

‘Os atentados contra a liberdade de expressão no México estão diminuindo, e quando se produzem provocam uma reação social para que não fiquem impunes’.

Muito bem: no momento em que se divulgava essa informação, no domingo (14/3), o jornalista Raymundo Riva Palacio e sua equipe fechavam, tristes e abatidos, em um bairro da zona sul da poluída Cidade do México, sua última edição do diário El Independiente, cujo sério e consistente projeto editorial durou nove meses – exatamente 283 dias – e que agora, ‘sob nova direção’, vai em frente capenga e desprestigiado. Mais: ao circular na segunda-feira, 15, o sóbrio e digno resultado dos derradeiros esforços da Redação comandada por Riva Palacio não provocava nenhuma reação mais indignada da parte informada da sociedade mexicana, e muito menos do resto da imprensa local.

A bem da verdade, o que aconteceu com o tablóide El Independiente não tem relação direta com censura governamental ou pressão econômica de empresas sobre de um órgão de imprensa mais atrevido ou provocador, pois o México goza hoje de uma razoável liberdade de expressão, em boa parte devida à própria postura tolerante do presidente Vicente Fox, que tem engolido até mesmo insultos pessoais.

Pior: repetiu-se aqui uma variante da mordaça, uma nefasta e letal conjunção de fatores, misturando nas mesmas patifarias e maracutaias gente do governo, da iniciativa privada e de um meio de comunicação, que liquidou com o projeto editorial idealizado por Riva Palácio [veja remissão abaixo para a matéria ‘Escândalo estremece jornal mexicano’]. Em resumo, o dono do jornal foi pilhado em flagrante subornando altos funcionários do governo da capital mexicana. Ele justificou seu ato dizendo-se vítima de extorsão; pagou para livrar-se da pressão.

As imagens porém contavam tudo.

Aos poucos, o chefe de Redação do jornal e sua equipe ficaram numa situação penosa, angustiante, obrigados não tanto a defender abertamente o patrão, coisa que não fizeram em momento algum, mas a publicar manchetes e títulos internos sobre as medidas das autoridades para prender e processar o próspero empresário argentino Carlos Ahumada, um gardelón naturalizado mexicano, dono do jornal, de dois times de futebol da primeira divisão e de empresas da construção civil reunidas num tal Grupo Quart.

Meta difícil

Até onde e quando poderiam agüentar os jornalistas sob a liderança de Riva Palacio, trabalhando sob essa tremenda pressão, vergonhosa, mas no fundo fiel aos princípios éticos do próprio projeto? Afinal, o diretor do jornal, Javier Solórzano, já pedira demissão no ar, em seu programa diário de rádio, no dia seguinte à divulgação do escândalo.

Até que agüentaram bastante. Mas ao ficar, há quinze dias, absolutamente claro, por meio de um vídeo, o envolvimento escandaloso de Ahumada em atos de corrupção – a entrega descarada de 45 mil dólares a um aspone graduado do governo de esquerda da Cidade do México, René Bejarano, para financiar campanhas e beneficiar suas empresas nas concorrências de obras públicas –, Riva Palacio convocou a equipe e com ela decidiu interpelar, por telefone, o dono do jornal – a esta altura já foragido da justiça.

‘O vídeo machuca a imagem do jornal’, escreveu Riva Palacio num editorial de primeira página, no qual ele e equipe pediam demissão. ‘Afinal, um meio de comunicação é um veículo público que sustenta seu avanço na credibilidade e na legitimidade.’

Pediam, então, os jornalistas que Ahumada se desligasse legal e financeiramente da empresa, vendendo-a. A princípio, ele concordou, mas depois, alegando uma série de obstáculos, recusou-se a tomar essa medida, que permitiria aos jornalistas ganhar novo fôlego e, quem sabe, de alguma forma, levar em frente seu projeto editorial que deslanchara, com discreto êxito, a partir do lançamento do El Independiente, em 3 de junho do ano passado. Diante da posição irredutível do empresário, Riva Palacio e equipe decidiram apresentar ‘su renuncia oficial’ na edição desta segunda-feira, 15/3.

Enquanto Ahumada, ainda foragido, e agora com os ativos do jornal embargados pelas autoridades (ele não pode vender nada) e as contas bancárias congeladas, nomeava outro jornalista para dirigir interinamente a publicação, Javier Ibarrola e colunistas estrelas, todos convocados por Riva Palacio para fazer parte do projeto original, se declaravam demissionários ao final das suas últimas colaborações. Deles, só fica o prestigiado analista político Carlos Ramírez, integrante agora de um Conselho Editorial que deverá orientar e dirigir o período de transição do jornal.

Em seu editorial de demissão, Riva Palacio, sempre elegante e contido, dizia também esperar do novo El Independiente ‘uma iniciativa comprometida com a inteligência e a imaginação ao serviço dos ideais democráticos’. Meta difícil de alcançar a esta altura, segundo os conhecedores da imprensa mexicana.

Para começar, o novo El Independiente não contará com a seriedade e competência de Raymundo Riva Palacio, um dos mais respeitados profissionais do ramo em atividade no México. Rigoroso ao ponto de conquistar uma imagem de radical e intransigente na defesa de suas idéias e pontos de vista, Riva Palacio, que antes havia deixado outro bom projeto editorial, o também tablóide diário Milenio, por discordar dos rumos tomados na condução do jornal, arriscou-se de novo, no El Independiente, na concretização de um ideal de publicação diária que há muito tempo levava na cabeça.

Independência total

Segundo ele mesmo contava a este Observatório quando o jornal completou seus primeiros seis meses de circulação, o empresário Carlos Ahumada, ao saber desses planos do jornalista, e querendo diversificar seus próprios negócios, comprou-lhe o projeto e, ao mesmo tempo, montou uma confortável e moderna redação, com oficina e tudo, nas antigas instalações de outro jornal que desaparecia, o Diario de México.

Como não conhecia bem o empresário e escaldado por experiências anteriores frustradas, Riva Palácio tomou suas precauções e com ele assinou um contrato especial, deixando bem clara sua posição de responsável total e absoluto pela linha editorial, além de produzir, todos os dias, um jornal de visual moderno e conteúdo equilibrado, levemente inspirado no italiano La Reppublica.

Pelo jeito pouco conhecedor das sutilezas do negócio jornalístico, Ahumada concordou – ‘teve sempre um comportamento impecável’, diria Riva Palácio – e só tentou interferir agora, no agonizar do jornal, quando seu chefe de Redação publicava tudo o que achava que devia publicar sobre o escândalo do famoso vídeo e seus velozes e perturbadores desdobramentos junto a Justiça mexicana.

Em outro de seus telefonemas à redação, Ahumada reclamava do que considerava um abuso na publicação de matérias ofensivas a ele, dono da empresa. Escorado no contrato, Riva Palacio respondia que só cumpria o que estava no papel por eles assinado, nada mais. E que iria assim até o final, informando os leitores com absoluta honestidade até o último dia de sua gestão – segunda-feira, 15.

Em sua última coluna no jornal, Riva Palacio escrevei:

‘Agradeço a quem confiou em nós e conosco compartilhou o sentimento coletivo de que respiramos livres até o final’.

Com luvas de pelica

Nenhum exagero retórico nessa avaliação do jornalista. Pois livres de fato foram para contribuir na denúncia de uma série de graves escândalos de corrupção que abalaram a gestão do governador da Cidade do México, Andrés Manuel López Obrador – e por tabela o próprio sistema político mexicano –, prejudicando seriamente sua ambição de ser o próximo presidente da República, em 2006, na sucessão de Vicente Fox.

Fox, por sua vez, que durante muito tempo agüentou – contrariado, mas calado – críticas gratuitas e demagógicas tanto do governador da capital mexicana como da própria imprensa (sobretudo algumas maldosas, dirigidas à sua esposa Marta Sahagún, suas pretensões presidenciais e suposta malversação de recursos na Fundação Vamos México, por ela criada e dirigida), parecia tranqüilo e relaxado ao discursar na assembléia da SIP em Los Cabos, no fim de semana. E num belo toque com luva de pelica, disse, não sem certa ponta de ironia e razão:

‘Mais que em qualquer outra época da nossa história, a capacidade de denúncia do jornalismo contribui a uma vida pública de mãos limpas e verdades claras. A imprensa é o principal inimigo da corrupção política, da opacidade, do engano e da falta de verdade. Agora, no México, cidadãos e jornalistas são os fiscais do poder’.

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Jornalista e escritor brasileiro radicado no México