Friday, 03 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Momento solene. Só um


Parecia que, desta vez, não haveria lugar para frivolidades. O sofrimento, agonia e morte de João Paulo II ofereceram à mídia brasileira a rara oportunidade para assumir a sua porção grave. A transparência adotada pelo Vaticano permitiu que se estabelecesse um vínculo de solidariedade e respeito que o clima hierático que emana da Santa Sé transformou em solene momento de reflexão.


O resultado foram as belas edições dos três jornalões dominicais (3/4, Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo) com farto e amplo material histórico, biográfico e teológico. Impossível saber o que ofereceram aos leitores das respectivas ‘primeirinhas’ (a tal edição ‘nacional’ que roda na manhã de sábado para ser remetida às principais cidades do país), já que a morte do papa ocorreu às 16h37 pelo horário brasileiro.


O que importa são as edições princeps, as que servem de referência. Os jornais souberam preparar-se com antecedência e, ajudados pela facilidade de espaço que costuma ocorrer numa edição do primeiro domingo do mês, esmeraram-se na elaboração. O vexame foi oferecido pelos semanários [ver abaixo].


Como aconteceu em outras situações dolorosas, as platitudes e o simplismo vieram nos dias seguintes. Sobretudo nos espaços ditos nobres, as colunas fixas e assinadas. Talvez porque bem remunerados e, por isso, excessivamente exigidos pelas empresas, seus autores ofereceram material de segunda-mão. Imperou a velha lei do ‘deixa que eu chuto’: uma hora antes do fechamento agarram a primeira – e às vezes única – idéia luminosa que lhes vêm a cabeça. E ‘mandam ver’.


Resultado: triunfou o lugar-comum e o clichê: João Paulo II foi um ‘conservador’, esmagou os ‘progressistas’ da Teologia da Libertação etc., etc. Vinicius Torres Freire, que escreve na Folha às segundas-feiras, em apenas 50 linhas de coluna ofereceu a mais original e rica análise teológico-midiática: ‘O debate sobre a Igreja está hoje contaminado por preocupações laicas. É influenciado pelo fato de muitos jornalistas não serem católicos ou cristãos, por serem religiosamente indiferentes ou ateus’. Pode-se acrescentar: por serem além de laicos, leigos [leia íntegra do texto no primeiro bloco da seção Entre Aspas, nesta edição].


A examinar


Em primeiro lugar: todas as religiões, sem exceção, são conservadoras. Stricto e lato sensu – com ou sem dogmas, com ou sem cleros, com ou sem organizações disciplinadas. Seitas são teoricamente abertas, por isso proliferam (veja-se o caso dos chamados ‘evangélicos’ com as suas sucessivas e milionárias dissidências).


Quando se auto-intitulam ‘avançados’, ‘de esquerda’ ou ‘progressistas’, a maioria dos jornalistas desobriga-se de refletir sobre a questão religiosa em geral. Sejam católicos, protestantes, muçulmanos ou judeus. Sequer comportam-se como livre-pensadores porque isto implicaria um hercúleo exercício mental para abandonar preconceitos e, sobretudo, as blindagens politicamente corretas.


Sequer duvidam, embora a profissão exija uma disposição elementar para o ceticismo. Por falta de tempo, ou mesmo de base cultural, não cogitam da questão espiritual. Aliás não cogitam. Ponto. Acham complicada a diferenciação entre moral e bons costumes, entre gnosticismo e agnosticismo, entre poder temporal e temporário, entre fé e misticismo, entre humanismo e religião, entre a auto-ajuda de Paulo Coelho e revelação.


Na condição de agentes do Estado de Direito, raramente ousam assumir-se como secularistas, defensores da rigorosa separação entre Estado e Religião, base da república democrática. Se, por acaso, percebem vagamente a diferença entre o criacionismo e evolucionismo é porque a questão é muito concreta. E está na moda.


Neste território vago e reduzido pelas imprecisões, João Paulo II foi enquadrado como ‘conservador’ porque combateu o comunismo (ou o socialismo real) e porque foi rigoroso contra uma das dissidências mais contrastantes do catolicismo, a Teologia da Libertação. A freira Dorothy Stang, ao que consta, não se engajou na Teologia da Libertação mas deu a vida em favor dos injustiçados. Este é um dado ainda não examinado pelos exegetas da mídia diária.


Experiência multissecular


Colocar Wojtyla ao lado de Bush é um insulto à inteligência. E não apenas porque o papa foi contra a doida intervenção no Iraque, mas porque João Paulo II representa a religião organizada, formal, disciplinada. E Bush simboliza o fanatismo religioso, incontido e irrefreável que se infiltra no aparelho de Estado e contamina o processo decisório.


Um pontífice que agiu com tamanho fervor em defesa do ecumenismo e do diálogo inter-religioso não pode ser qualificado como ‘conservador’. Só a pressa e a ligeireza explicariam o deslize. Um papa que pede perdão pelos pecados cometidos pela Igreja Católica contra outras religiões não é conservador, é vanguardeiro, avançadíssimo, porque, na realidade, pediu perdão não apenas pela tenebrosa Inquisição, mas também por quase dois milênios de violências contra aqueles que preferiram caminhos diferentes do cristianismo. Graças a isso, o Vaticano, pela primeira vez na História, é respeitado por anglicanos e luteranos tradicionais, por xiitas e sunitas, por judeus reformistas ou ortodoxos, por budistas e xintoístas, por crentes e descrentes.


O silêncio imposto pelo Vaticano aos dissidentes ‘libertários’ não pode ser examinado dentro dos parâmetros do Estado secular e democrático. Religião é assim mesmo, imperiosamente pétrea, monolítica. Ao vestir o hábito, cumprir os votos e aceitar os cânones da sua confissão, o religioso não tem mais direito ao livre-arbítrio. Jornalistas deveriam ter o discernimento para entender tais sutilezas e perceber que a adoção da ótica laica no exame das questões da fé estimula o seu corolário — a invasão dos dogmas religiosos na esfera do Estado.


Se os jornalistas estão comprometidos com uma visão efetivamente descomprometida e isenta, precisam enxergar João Paulo II como uma das figuras marcantes da segunda metade do século 20. Foi um desses raros líderes que souberam detectar o momento histórico e operar as grandes viradas.


Além de manter viva a lembrança do horror nazista, além do ostensivo repúdio ao anti-semitismo, além de enfrentar o poderio soviético e contribuir para o seu esfacelamento sem dispor de um só regimento (a não ser a garbosa Guarda Suíça), Karol Wojtyla teve a clarividência para perceber o enorme espaço para uma virada espiritual no início da civilização pós-industrial. E a religião católica tem uma multissecular experiência para ocupar espaços. Ela que inspirava tanto medo agora prega o fim do medo. Conviria prestar atenção a isso.




Papéis trocados: as revistas dão vexame


Normalmente os diários são menos esmerados, menos analíticos, e, em geral, os semanários de notícias são mais densos. Jornais porque são cotidianos seriam dispensáveis e as revistas, permanentes. O anúncio da morte de João Paulo II no último sábado (2/4) foi trágico para a história do jornalismo hebdomadário no Brasil: as revistas revelaram-se descartáveis e os jornais ofereceram material reflexivo de grande quilate.


Estranho é que as revistas não se omitiram nem se refugiaram na desculpa que um fato acontecido no sábado à tarde seria impossível de cobrir numa publicação colorida que deve sair na manhã seguinte. Ao contrário, ofereceram espaço e destaque. O que chama a atenção é a forma com que este espaço foi desperdiçado.


Veja colocou o papa na capa e ofereceu um caderno especial com 14 páginas – rigorosamente inodoras (fotos ampliadas em página dupla, apenas legendadas). IstoÉ não conseguiu atualizar a capa (compreensível), ofereceu um editorial e mais 32 páginas num caderno especial. Seria formidável se o conteúdo não fosse rigorosamente inútil. Época ofereceu aos leitores uma capa e mais 16 páginas (enfiadas dentro do caderno de negócios, não havia outro jeito, entende-se). Dispensáveis.


A edição ‘histórica’ distribuída por Veja a seus assinantes, a partir da segunda-feira (4/4), só agravou a impressão de falta de planejamento. O material, mais consistente e evidentemente preparado com muita antecedência, força uma pergunta que não seria lembrada: por que não publicaram antes?


Suicídio coletivo


O que chama a atenção não é o espaço dado para o noticiário, mas como foi usado em benefício do leitor. Os jornais prepararam-se; as revistas, não. Os jornais souberam planejar, os semanários improvisaram. Sabe-se que revistas são mais complicadas para produzir, imprimir e distribuir. Mais uma razão para que na quarta-feira (quando Karol Wojtyla, mostrou o rosto na janela contorcido pela dor e incapaz de pronunciar qualquer palavra), os editores acionassem os esquemas de emergência para produzir edições à altura do que estaria prestes a acontecer. Faltou faro, faltou empenho.


A grande verdade é que as redações dos semanários foram drasticamente reduzidas. Não há gente suficiente, os profissionais mais experientes foram dispensados e a ilusão de que é fácil sustentar a circulação de uma revista com duas capas por mês sobre saúde e comportamento condenou à insignificância nossos outrora audaciosos semanários.


Se o leitor descobrir que as revistas só servem para edições históricas, será o fim das revistas. Estamos assistindo a um suicídio coletivo e consciente de uma parte importante da nossa imprensa. Não é contingência, é escolha.


Que descansem em paz! (A.D.)