Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

O jornalista como curador e professor do público

Imagem: Shutterstock/Creative Commons

As pessoas estão se informando cada vez mais através das redes sociais, obrigando o jornalismo a se reposicionar dentro dos fluxos noticiosos na internet. Facebook, Twitter e Google estão ocupando um espaço crescente na composição da agenda informativa do público, fazendo com que os profissionais sejam cada vez mais solicitados a orientar, aconselhar e até mesmo ensinar as pessoas a ler, ouvir e ver notícias. É uma situação inédita provocada pelas profundas mudanças que o jornalismo está assistindo em consequência da generalização do uso das tecnologias digitais de informação e comunicação (TICs).

Em termos bem simples, nós, jornalistas, estamos deixando de ser basicamente assalariados de empresas que publicam e comercializam notícias, produzidas por nós, para transformar-nos em curadores, analistas ou tutores de pessoas atualmente definidas como audiência, mas que ganharam a condição de protagonistas da produção de conhecimento graças às TICs.

A transformação de assalariado para a de professor, ou tutor, assinala uma mudança qualitativa transcendental no papel que o jornalismo passou a ter na era digital, onde a informação tornou-se o item mais importante na movimentação da engrenagem social, especialmente na interação entre indivíduos. Assinala também a ascensão do jornalismo para um status social cuja transcendência equivale à da educação na sociedade contemporânea.

Tudo isto ainda é visto como uma espécie de delírio por muitos profissionais. A dependência salarial das empresas e o desemprego dificultam a percepção da natureza e relevância das mudanças em curso dentro da área da comunicação.

Fake News e colonialismo de dados

O jornalismo está rompendo o cordão umbilical/salarial que o liga às empresas que condicionam a produção noticiosa aos seus interesses comerciais porque dispõem do suficiente dinheiro para financiar gráficas e equipamentos eletrônicos audiovisuais, bem como despesas operacionais na distribuição ou transmissão.

A internet quebrou o monopólio das corporações na configuração dos fluxos noticiosos ao baratear incrivelmente o custo dos equipamentos, o que permitiu a milhões de indivíduos participar na produção de informações jornalísticas.

Se por um lado a quebra do monopólio permitiu a diversificação e democratização nos fluxos de dados, fatos e eventos, por outro criou um grave problema causado pela inexperiência das pessoas comuns no manejo da informação. Isto criou condições para o surgimento de distorções como o fenômeno das fake news, das incertezas e inseguranças sobre procedimentos de aferição da credibilidade, bem como do chamado “colonialismo de dados” (controle social, político e econômico graças à manipulação e comercialização de informações pessoais). São temas novos, pouco conhecidos e que estão alterando conceitos clássicos como o de privacidade, direitos autorais e uso de dados.

A pergunta inevitável é: quem poderá fornecer às pessoas os elementos para que elas possam lidar com esta nova realidade da informação digitalizada? Especialidades como sociologia, semiótica, antropologia, computação, ciências da cognição e neurociência estudam a informação sob distintas abordagens. Mas apenas o jornalismo sabe por experiência própria como um dado, fato ou evento pode atrair a atenção do público, um tipo de conhecimento essencial num momento em que começamos a viver o que alguns já chamam de “guerra pela atenção” num mundo mergulhado numa avalanche de informações e notícias.

Não se trata de atrair a atenção das pessoas para vender produtos ou promover comportamentos, como fazem os marqueteiros e publicitários, mas de transmitir ao público a noção de como uma informação pode ser crucial para a produção de conhecimentos necessários à solução de problemas individuais e coletivos. É um desafio gigantesco porque ele ocorre num ambiente carregado de dúvidas e incertezas geradas por nosso ainda escasso conhecimento sobre a natureza intrínseca da informação.

O remix de informações

Sabe-se que a informação é um produto imaterial resultante da contextualização e atribuição de significado a dados, fatos e eventos. Exemplo: o número 1 não tem significado para nós se o tomarmos isoladamente. Ele é um dado bruto que só ganha importância se for associado a algum elemento contextual como passagem do tempo, quantidades, ordem etc. Aí ele se torna uma informação porque passou a ter um significado. Quando alguém recebe uma informação e a recombina (remixa) com outras informações acumuladas em sua memória, o resultado pode ser a produção de um conhecimento capaz de resolver algum dilema, dúvida ou empecilho. O processo é bem mais complexo e foi muito simplificado para facilitar a compreensão por quem não tem familiaridade com estes novos conceitos e sistemas de produção de conhecimentos.

O jornalismo acumulou uma enorme experiência sobre técnicas de formatação de um tipo específico de fatos, dados e eventos, caracterizado pelo seu ineditismo para segmentos particulares do público. Este produto é conhecido pelo nome de notícia, uma forma especial de informação marcada também por atributos específicos como relevância, pertinência, exatidão e confiabilidade. Quando contextualizamos e atribuímos significados a uma notícia, ela passa a ser uma informação importante na captação do interesse de leitores, ouvintes e telespectadores. Logo, um elemento essencial para que as pessoas possam desenvolver conhecimentos que as permitirão resolver problemas do seu dia a dia.

Pesquisadores acadêmicos já falam no surgimento de uma “comunicação social baseada na notícia”, um processo que torna a atual matéria prima do jornalismo num ingrediente incorporado ao dia a dia das pessoas, ocupando um papel tão importante e obrigatório quanto a educação formal em escolas e universidades. A capacitação informativa tende a se tornar tão indispensável quanto a alfabetização porque sem ela as pessoas não terão condições de manejar a informação e tomar decisões adequadas aos seus interesses, desejos e necessidades.

Os jornalistas terão que alterar rotinas, regras e valores para poder se enquadrar nesta nova função. É um desafio duplamente difícil porque terá que superar a cultura legada pelo caráter comercial na produção de notícias e, ao mesmo tempo, explorar um espaço desconhecido no conhecimento humano, tudo isto num momento de incertezas. Mas esta transformação é uma condição indispensável para que a profissão não só sobreviva como, principalmente, tome consciência de que será ainda mais importante, do que é hoje, para a vida de pessoas e comunidades.

Para mais detalhes sobre os temas abordados no artigo, consulte:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Informação
A Informação, livro de James Gleick disponível em e-book
Understanding Knowledge as a Commons. From Theory to Practice (O conhecimento como bem comum. Da Teoria à Prática), MIT Press

Texto publicado originalmente por objETHOS.

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Carlos Castilho é jornalista, colaborador do objETHOS e do Observatório da Imprensa.