Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Questões em aberto na Lava Jato e a ira da torcida

(Foto: Nelson Jr./SCO/STF (19/12/2018) – Fotos Públicas)

A decisão do dia 27 de agosto da 2ª Turma do STF alcançou uma repercussão que é a marca atual da nossa miséria democrática e institucional. Tem interpretação para todos os gostos, sempre de acordo com o interesse de quem interpreta. E, claro, muita manipulação e silenciamento.

Em resumo: o colegiado decidiu anular uma sentença condenatória dada pelo ex-juiz Sergio Moro em favorecimento do ex-presidente do Banco do Brasil e da Petrobras Aldemir Bendini. Os ministros entenderam, por três votos a um, que réu delatado e réu delator não podem compartilhar os mesmos prazos para alegações finais em ações penais porque estão em condição assimétrica. Quem delata deve (ou, pelo menos, se espera que o faça) apresentar provas contra quem foi delatado. Portanto, este último precisa saber da acusação para se defender. Parece óbvio, mas não em tempos de Brasil lavajatista. A manifestação do acusado antes da sentença tem por objetivo garantir, ao menos tecnicamente pelo rito cumprido, que a ampla defesa e o direito ao contraditório estejam atendidos. É garantia basilar contida na Constituição Federal (1988).

Questões em aberto
Se é princípio tão pacificado, o que poderia gerar desconforto sobre a sua não observância em processo da força-tarefa da Lava Jato? Eu respondo, mas farei isso perguntando:
(1) Como uma legislação relativamente nova (de 2013), de aplicação em casos de grande repercussão e controversos, pode não ter merecido posicionamento anterior do STF diante de suas inconsistências, o mesmo STF que agora anula uma sentença de primeira instância? Antes disso: (2) como uma legislação foi instituída sem contemplar tal princípio? Em complemento: (3) será que ninguém no meio jurídico havia se dado conta de que a primeira instância estava tratando delator e delatado no mesmo nível e, por isso, cerceando a defesa em vários processos? (4) Se se deram conta, por que nenhuma providência foi tomada para garantir a vigência do Estado Democrático de Direito? Aliás, (5) como explicar que um tribunal superior tenha rejeitado habeas corpus com o mesmo pedido que só agora é atendido pela suprema corte? (6) Como aceitar que o MP, que é o titular da ação penal pública, permitiu que a Constituição Federal pudesse ser flagrantemente descumprida?

Desconforto
Você, que leu as perguntas acima, saiba que esse desconforto é meu. Perplexo com a maneira como a decisão foi divulgada e repercutiu na mídia e entre operadores do direito, fui pesquisar e não encontrei quase nada no extenso noticiário de terça-feira à noite e nas muitas análises posteriores. Terá sido um sinal? Pois bem: são perguntas que podem desvelar um modelo casuístico de aplicação das normas jurídicas em favor de objetivos aparentemente já traçados e, por óbvio, não admitidos claramente. Considero algo gravíssimo.

Será que alcançamos um estágio tal de regresso civilizatório que nem percebemos mais relevância em deixar de questionar o básico? Afinal, vamos mesmo permitir que os processos tenham apenas capa e que o nome grafado nela é que vá determinar como, e sob que condições, a legislação deve ser aplicada? É esse Brasil que queremos para o futuro? Vocês acham mesmo que o país vai resistir a jeito tão peculiar de aplicar a lei e fazer justiça? Por quanto tempo acham que isso será tolerado antes da barbárie total se instalar entre nós?

Hard news
Digo isso porque, além de não encontrar os questionamentos acima, percebi que quem se interessou pelo tema ficou sabendo em manchetes e textos diversos de coisas “mais quentes e diretas”, do tipo (com aspas ilustrativas):

1- “Pela primeira vez o STF anulou uma sentença do Sergio Moro”. Pergunto, sem querer ofender: e daí? Qual ineditismo existe no fato de uma decisão de piso ser revista na instância superior? Joguei no buscador a frase “justiça anula condenação em primeira instância” e apareceram 1.940.000 resultados…
Ao contrário, se é para buscar algo inédito, quem sabe isso não está no fato de uma controvérsia jurídica ter sido respondida por uma turma do STF seis anos depois da edição da Lei nº 12.850/2013 e cinco anos após o início da operação Lava Jato? No mais, transparece a já conhecida blindagem de parte da mídia sobre o ex-juiz e atual ministro da Justiça e Segurança Pública.

2- “A anulação da primeira sentença de Sergio Moro é sinal do fim da Lava Jato”. Quem disse? Em todos os processos da força-tarefa a assimetria foi descumprida? Todos estão em fase final, no aguardo da sentença? Ademais, os processos originados em Curitiba estão fora do sistema jurídico brasileiro a ponto de serem desobrigados do cumprimento da exigência constitucional? Minha opinião, com a qual você não é obrigado a concordar: quem trouxe a ameaça do fim da Lava Jato foi o juiz de primeira instância e os procuradores, que aceitaram a orientação e o direcionamento do magistrado em alguns processos, conforme revelado por The Intercept Brasil e seus veículos jornalísticos parceiros.

3- “A revisão da primeira sentença de Moro pode beneficiar mais de trinta réus da Lava Jato e isso é um absurdo completo. Até a ministra Carmen Lúcia deu um voto contrário ao interesse da força-tarefa”. E daí? Então, por esse entendimento, sendo perseguido o norte do combate à corrupção, poder-se-ia prejudicar mais de cinquenta pessoas e ficaria de bom tamanho, ou seja, tudo estaria legitimado? Também membros do STF não podem julgar de acordo com suas convicções, ainda que representem a quebra de expectativa em contrário?

4- “Não dissemos: a defesa de Lula já entrou com pedido para que um dos processos do ex-presidente tenha mesmo desfecho da decisão que anulou sentença contra o ex-presidente da Petrobras”. Por que deveria ser diferente, se houve prejuízo para a defesa do réu? Por que ele é ex-presidente da República? Se fosse a sua defesa, ou de um familiar seu, você lutaria para que ela estivesse dentro do rito previsto na lei?

5- E, por fim, algo que considero uma espécie de covardia informativa, capaz de alimentar a histeria coletiva: nos enquadramentos acerca dos atributos da notícia inicial, veio sem nenhum destaque, quando apareceu, a informação de que o réu Bendine não foi inocentado. Sua sentença foi tão somente anulada, mas o processo retornará para a primeira instância, que agora cumprirá o rito determinado pela Constituição, e haverá nova sentença em breve. Sim, uma informação que, se bem explicada, agiria no sentido de aplacar a ira da torcida. A quem a falta dessa explicação interessa?

Democracia envenenada
Daí o fato de a gente esbarrar, nos últimos dias, com falas como “este é o país da impunidade” ou “vergonha de STF”. Um diagnóstico fechado, revelador de uma doença coletiva, que contamina há anos e que se alimenta da pouca informação ou da falta dela. E que impede que perguntas elementares sejam feitas e respondidas. Uma doença oportunista, nascida em organismo tomado por um ódio que foi justificado pelo desejo manifesto de extirpar a corrupção a qualquer custo, mas que é marcado pela seletividade contra adversários da política. Uma doença capaz de tornar sem controle o uso de um dos remédios ministrados (a citada lei das colaborações premiadas), que já cumpre a função de ser puro veneno.

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Fabiano Mazzini é jornalista, professor do Curso de Jornalismo do Centro Universitário Faesa e mestre em História pela Ufes.