Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Éric Zemmour está perdendo o fôlego?

Foto: AFP

Dentro de pouco mais de quatro meses, os franceses irão às urnas escolher o presidente. Já existem treze candidaturas confirmadas, representando as diversas tendências políticas. O atual presidente Emmanuel Macron deverá pleitear sua reeleição em janeiro, enquanto o mais ativo e turbulento pré-candidato, o nacionalista franco-atirador Éric Zemmour, racista, islamofóbico e anti-imigração, acaba de oficializar sua participação.

Jornalista de televisão, conhecido polemista, escritor de livros políticos com venda na casa do milhão de exemplares, Zemmour vinha sendo o mais ativo, o mais popular, o mais entrevistado, o mais amado e o mais odiado de todos os pretendentes ao Eliseu. Em plena campanha há meses, aproveitando o lançamento de seu livro “A França não disse a última palavra”, no qual estão suas ideias, Zemmour participou de debates e deu entrevistas por todo país, mas sem se declarar candidato.

Embora seu nome tenha subido nas pesquisas eleitorais e tenha sido considerado capaz de chegar ao segundo turno, ele parece ter alcançado o seu limite máximo de popularidade aos 15%, dando agora sinais de um corredor de maratona perdendo o fôlego. A última sondagem eleitoral revelou ter sido suplantado por Marine Le Pen, com 19%, candidata pela terceira vez à presidência pelo partido Rassemblement National (Reunião Nacional). Embora ambos defendam ideias da extrema direita para a França, é difícil imaginar uma desistência de Zemmour em favor de Marine Le Pen, embora Marine já tenha se pronunciado esta semana por uma união de forças.

Comparado com Jean-Marie Le Pen, fundador do partido Frente Nacional de extrema-direita, e com sua filha Marine, o combativo Eric Zemmour é muito mais radical. Na sua campanha, ele traça um quadro apocalíptico para a França, onde as mulheres perderão seus direitos se não for eleito, assumindo de certa forma a figura de um salvador da França como um país de raça branca e de seu idioma, o francês.

Se nada for feito, segundo ele, a França como é hoje desaparecerá, substituída por um país inseguro e dividido como o Líbano, tendo suas periferias e algumas regiões com suas populações dominadas pelos muçulmanos, falando árabe e considerando o chefe religioso local com suas leis religiosas da shariah como superior ao presidente e à Constituição da França. A culpa, segundo Zemmour, é dos governos atual e anteriores, que permitiram a entrada de imigrantes africanos e muçulmanos com famílias numerosas e de alta natalidade.

Zemmour não demonstrou nenhuma dificuldade em explicar numa entrevista a um canal francês de televisão como acabará com essa situação, considerada pela imprensa exagerada e catastrófica. Para ele, no caso de ser eleito, a solução será a promoção de um plebiscito autorizando a expulsão de todos os estrangeiros ainda em situação irregular, a suspenção ou anulação de toda legislação favorável à reunião de famílias, a expulsão de todos os estrangeiros que tenham sido condenados por infrações ou delitos. Expulsão para seus países de origem de todos os estrangeiros presos aguardando julgamento ou cumprindo pena de prisão, tão logo saiam da prisão ou terminem suas penas.

Essa relação de atos racistas e discricionários inclui também a anulação de todas as leis favorecendo as famílias de imigrantes e seus filhos, por considerá-las como um tipo de incitação à imigração na França.

A profecia de André Malraux

Essa síntese do que se passa hoje na França, país sempre considerado como o berço do racionalismo, do laicismo, dos conceitos de igualdade social para todos, de onde provêm o respeito aos gêneros, cuja Revolução em 1789 foi o ponto de partida para os movimentos sociais em todo mundo, tudo isso nos leva à profecia de André Malraux.

Escritor, autor do livro “Condição Humana”, entre outros, aventureiro, resistente contra os alemães durante a ocupação da França, anticolonialista, ministro da Cultura de De Gaulle, André Malraux teria dito a frase “O século XXI será religioso ou não será” — citada pelo jornalista francês André Frossard — com suas versões diversas, como “será espiritual” ou “será místico”. Em todo caso, religioso, espiritual ou místico, nosso século vai nessa direção.

A discussão da religião como recurso político de dominação não é de hoje. O cristianismo foi um tipo de movimento revolucionário pacifista, baseado numa universalização do monoteísmo judaico. Para os romanos ocupantes da Palestina, o pregador nazareno Jesus era um contestador do Império e suas ideias poderiam fragilizar o domínio romano. Sua condenação à morte, depois de um rápido julgamento, deveria ter acabado com a ameaça de um complô contra Roma, porém a crença difundida por seus seguidores de sua ressurreição, mesmo se jamais provada, manteve vivas as ideias de uma vida livre e melhor, propagando-se principalmente entre os pobres e escravos. Em três séculos, criaram-se doutrinas, dogmas e o Império Romano deles se apropriou, tornou-se cristão e a colonização romana da Europa foi cristã.

Numa tentativa de resumir a atualidade, dentro de uma perspectiva de Malraux, se poderia chegar a uma síntese, que será detestada pelos religiosos, de que o cristianismo católico romano ou ortodoxo como forma de domínio político social vai chegando ao seu limite. Porém, as tentativas de criação de mecanismos sociais e estruturas políticas sem religião, sem crença em alguma coisa hipotética ou sobrenatural, propostas principalmente pelo marxismo, não deram certo. O ser humano tem dificuldade para aceitar a morte e precisa de uma esperança, mesmo que seja ilusória, acompanhada de símbolos, regras e ritos em grupos.

Na América Latina de hoje, isso se torna evidente. O catolicismo se estratificou e com raras exceções perdeu sua atração como rito religioso; os sacerdotes acabaram ficando longe do povo e da vida real das pessoas. Tudo isso agravado com o advento das novas tecnologias e do materialismo dos mecanismos econômicos. Surge, então, o evangelismo com seu lado de religião alegre, seus cantos gospel, suas reuniões semanais em grupos que se ajudam, lembrando os tempos dos primeiros grupos cristãos. Resultado: o Brasil e a América Latina mudam de religião primeiro nas favelas mas essa evangelização vai chegar ao poder político.

Na África, acontece a mesma coisa com outra religião monoteísta, criada por Maomé no século VII. Uma parte do cristianismo católico levada pelos colonizadores perdeu sua força inicial. A partir do século VII começa uma islamização da África e, para abreviar, hoje os cristãos estão deixando de ser majoritários. É a radicalização do islamismo pela jihad que Eric Zemmour utiliza para assustar os franceses. E seu exemplo são as periferias das cidades francesas, onde também existe a máfia e o comércio das drogas.

É evidente que as religiões envelhecem e o proselitismo e o aumento de populações podem provocar mudanças estruturais, porém a França não estaria vivendo o “momento catastrófico” pintado pelo extremismo do polemista. Nada a ver com a América Latina, onde o evangelismo de origem protestante será majoritário até o fim deste século, sob influência do expansionismo econômico dos Estados Unidos.

Hoje, na França, embora o islamismo seja a segunda religião professada, ele representa apenas 8% da população. E embora haja muitos franceses com nomes árabes (o que irrita Zemmour), continuam nascendo muitos franceses com nomes tradicionais cristãos. Muitas mulheres se vestem cobrindo todo o corpo e o rosto com a burca, porém isso não significa o fim da moda francesa. Mesmo porque, de uma maneira geral, apesar das pressões comunitárias, as estatísticas mostram não serem todos os imigrantes africanos fiéis seguidores do Islã. Apenas um terço da população faz suas cinco preces diárias e nem todos observam o jejum do Ramadã e ou comem só carne halal.

Zemmour critica igualmente o Tratado de Maastricht, de 1992, fundador da União Européia, pelo qual os países europeus deixaram de ser isolados para viverem em comunidade, inclusive com um Parlamento Europeu. Ao contrário do pensamento de Zemmour, a França e os cidadãos europeus cresceram economicamente nestes últimos trinta anos, embora sem resolver o problema do desemprego de massa, com transformações estruturais influenciando na vida comum dos franceses.

Embora tivesse preocupado muitos franceses com o risco de conseguir se eleger e aplicar suas medidas draconianas contra os estrangeiros, Zemmour é basicamente, como disse sua concorrente Marine Le Pen, “um polemista e não um político”. Na verdade, Zemmour não conta com uma base de políticos já eleitos, como prefeitos e deputados, para apoiá-lo e nem com um partido que o sustente. É também criticado por não possuir um programa global detalhado para o exercício da presidência. E o mais grave, não parece dispor de condições para obter as exigidas 500 assinaturas de “parrainage”, que se poderia traduzir por patronagem, de personalidades como parlamentares, prefeitos, conselheiros de prefeituras. Essas 500 assinaturas são essenciais para confirmar a candidatura. Ora, o fato de Zemmour defender posições consideradas de extrema direita e de tais assinaturas serem públicas pode provocar a rejeição de muitos.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.