Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Somos um exemplo para o mundo

(Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

O presidente Bolsonaro declarou que o Brasil é um exemplo para o mundo.

As queimadas consumiram 20% do Pantanal desidratando a fauna composta de 36 espécies em extinção e espalhando uma chuva negra pelo sudeste do país. A resposta do presidente foi “estamos vendo alguns focos de incêndio”.

O desmatamento alarmante da Amazônia provocou reação em cadeia da Dinamarca, França, Alemanha, Holanda, Reino Unido, Itália, Noruega e Bélgica que se recusam a consumir produtos brasileiros se não houver ações reais imediatas aos 140 mil focos de calor em todos os biomas. A resposta do governo foi o corte do orçamento do 2021 de 4% para o IBAMA e 12,8% do ICMBio, desmonte da Funai e INPE. “Não há comprovação científica”, disse o Ministro-chefe do gabinete de Segurança Institucional, General Heleno, sobre os índices do desmatamento e, desconfiado dos dados do INPE, o governo vai usar R$ 577 milhões da Lava-Jato para comprar um satélite “próprio” na Amazônia.

Os indígenas e suas terras ricas em minérios estão no foco do governo que quer evangelizá-los, extirpá-los e deixá-los à deriva nesta pandemia quando aumenta a morte dos indigenistas como Rieli Franciscato, morto por flechada por um índio isolado yarapariquara. Resposta do general Heleno: “As demarcações das terras indígenas, forjadas, merecem ser todas revistas”.

A pandemia levou 140 mil brasileiros e infectou 4 milhões e meio mas a pasta da Saúde, acéfala durante quatro meses, empossou o mesmo general especialista em logística que transformou o Ministério em quartel, demitindo técnicos e contratando militares. Eduardo Pazuello nomeou o veterinário Laurício Monteiro Cruz, especialista em saúde animal que atuava como técnico judiciário para coordenar o Programa Nacional de Imunização. A resposta do presidente foi apelar para a “valentia” de quem não teve medo de sair: “Ficar em casa é para os fracos. O Brasil foi o país que teve o melhor desempenho na pandemia”.

A pandemia trouxe à tona 20 milhões de pobres invisíveis e o auxílio emergencial, que beneficiou 66 milhões de brasileiros, agora vai deixar 6 milhões de fora pagando a metade dos R$ 600,00 iniciais e aumentando o desemprego que já soma 14,3% da população ou quase 30 milhões de pessoas. A fome afeta mais de 10 milhões. Bolsonaro faz o que alardeia “não vou tirar dos pobres para dar aos miseráveis”.

Os indicadores de violência aumentaram e os números vão piorar nas próximas décadas na mesma proporção em que a venda de armas vive o seu melhor momento, mais de 100 mil novos registros só no primeiro semestre deste ano. A resposta dos Bolsonaro e seus adeptos é passar projetos de flexibilização de porte de armas no Congresso e posar apertando um gatilho com as mãos para quem estiver na frente.

As Igrejas proliferam como padarias no Brasil mas Bolsonaro resolveu vetar o perdão das dívidas das Igrejas (evangélicas) beirando meio bilhão e, ao mesmo tempo, estimular parlamentares a vetar o seu veto. “Deus acima de tudo. O país é laico mas o governo é cristão”.

Nossa política externa é de subserviência aos Estados Unidos. Impõe uma agenda de direita na região, mancha uma tradição nas votações da ONU em que se alia a países fundamentalistas islâmicos como Arábia Saudita, Qatar, Afeganistão, Bahrein, Egito que discriminam a mulher e proíbem contracepção. Nossa diplomacia se distancia dos latino americanos em votos como o do Secretário Executivo do Banco Interamericano de Desenvolvimento, que apostou no candidato de Trump, o americano Mauricio Claver-Carone, vetando o brasileiro Paulo Abrão. E confirmando o irmão do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, Arthur Weintraub, para uma das secretarias da Organização dos Estados Americanos. A mudança de rotas do Itamaraty minguou até a verba para missões de paz que caiu 70%. O chanceler Ernesto Araújo afirma ter “orgulho de trabalhar com os Estados Unidos”.

Para fazer obras de olho na reeleição, o governo corta R$ 1,5 bilhão da Educação, R$ 9,64 milhões do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, cerca de meio bilhão do Ministério da Cidadania, R$ 250 milhões da Agricultura. Por verbas para facilitar a reeleição e inflar o Bolsa Família renomeado Renda Brasil, o governo quer decreto para ora cortar R$ 10 bilhões do benefício de idosos e pessoas com deficiência, ora congelar aposentadorias e pensões, ou ameaçar a implantação de uma nova CPMF. Bolsonaro joga uma pelada com a equipe econômica se fazendo de bom, e diz “vou dar cartão vermelho” para a turma “ sem coração”… Que ele próprio colocou no governo.

O Ministério da Cultura, depois de um ministro reproduzir o discurso hitlerista e outra banalizar a tortura, chegamos ao ator de Malhação Mário Frias e à nomeação de pessoas tão estranhas à área quanto adeptas do bolsonarismo. Tentaram emplacar o capitão da Polícia Militar da Bahia, André Porciuncula Alay Esteves na Secretaria de Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura mas a escolha era tão gritante que o capitão foi exonerado antes de assumir. Conseguiram dar a uma cirurgiã-dentista, Edianne Paulo de Abreu, o cargo de coordenadora-geral do Centro Técnico de Audiovisual responsável por 6 mil títulos. Edianne é blogueira e nas redes sociais posa ao lado dos Bolsonaro e chama o amigo Mário Frias de “Didireita”. Resposta de Mario Frias às críticas: “Queremos uma Secretaria da Cultura ágil, leve e eficiente… Estamos enfrentando a revolta daqueles que se apoderaram da lei Rouanet” [ leia-se lei Rouanet de fomento à cultura quase inoperante no atual governo].

Para a Funarte, Fundação Nacional das Artes, órgão de incentivo ao circo, dança, teatro, música, artes visuais, memória e pesquisa artística, que teve presidentes como José Cândido de Carvalho, Aloísio Magalhães, Ziraldo, Ferreira Gullar, Márcio Souza, Sérgio Mamberti, acaba de nomeado o coronel de reserva do Exército especializado em logística e transporte de cargas pesadas, Lamartine Barbosa Holanda. Ele promete colocar em prática o projeto de um ciclo militar na Cinemateca Brasileira, por ora fechada com 51 funcionários demitidos e o maior acervo cinematográfico da América do Sul ameaçado. Holanda já explicou, “não que eu seja vocacionado para isso (cinema…), desde criança eu enrolava e desenrolava filmes numa companhia do Rio Grande do Sul”. Consta que sua experiência consiste no roteiro de um filme de ações militares do Exército onde inseriu “O inimaginável aconteceu. O terror. A guerra. Prepare-se. Brasil acima de tudo”.

Está sendo desmontada A Fundação da Casa de Rui Barbosa que contém 27 mil volumes, 60 mil documentos, e os acervos pessoais de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Plínio Doyle entre outros, um think tank com agenda de palestras, publicações, cursos em várias áreas e trânsito universitário internacional. A nova diretora Letícia Dornelles até o momento só contratou uma brigada de incêndio, ameaçou emparedar a Casa em Museu e em carta diz que reza para Rui Barbosa. Os bons acervos estão saindo do Brasil, ninguém quer ficar nas mãos de gestores incapazes ou dos 6.157 militares no governo, dez tornados ministros.

A Música Popular Brasileira pela primeira vez despenca nas exportações para o mundo e nossa MPB está perdendo até para a Finlândia. Num vídeo no antigo chiqueirinho em frente ao Palácio, Bolsonaro pega o microfone e pede que a Globo toque “uma música sertaneja”.

Damares Alves agiu nos bastidores para impedir o aborto legal de uma menina de 10 anos que engravidou após estupro. A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos ainda comunicou o nome da menina à ativista que chama de “filha”, Sara Giromini, para divulgar nas redes e protestar na porta do hospital contra o aborto. Está em curso uma portaria do Ministério da Saúde exigindo dos médicos que notifiquem à Polícia qualquer caso de aborto em consequência de estupro e ofereçam à mulher sobrevivente do estupro a imagem do feto por ultrassonografia. A ONG Human Rights Watch pede ao Brasil que revogue a portaria.

O presidente elogia torturadores, faz odes à ditadura, clama um AI-5, endossa textos apócrifos golpistas, execra a imprensa “comunista e mentirosa”, a “mídia catastrófica”. Parentes de sua ex-mulher Ana Cristina Valle sacaram de suas contas vinculadas ao gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro o total de R$ 2,1 milhão. Os saques de seus ex-assessores somam R$ 260 mil caracterizando as “rachadinhas”, leia-se corrupção. A Primeira dama Michelle Bolsonaro teria recebido R$ 89 mil do ex-parlamentar detido, Fabrício Queiroz. Resposta do presidente a quem o questiona “vontade de encher sua boca de porrada”. Por ironia, a música sertaneja que Bolsonaro ouviu é “Chuva de Honestidade”.

Os brasileiros pedem ao mundo, não se mirem no exemplo deste Brasil que não reconhecem como seu. Depois que o gás foi encontrado em Vênus indicando possível presença de seres vivos, avisam que estão dispostos a se mudar nas nuvens para o novo planeta, um mundo novo, porque a vergonha os impede de emigrar para qualquer país.

Para Bolsonaro, a pergunta: “Por qué no te callas?”.

***

Norma Couri é jornalista.