Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Dr. Palhares fez pelo "protegido" o que os pauteiros jamais fizeram pelos leitores

Nosso parco elenco de heróis foi enriquecido nas duas últimas semanas pelo Dr. Palhares, sombra telefônica que empurrou em 30 dias um processo atolado no INSS há mais de 400. O nome, emprestado da galeria de Nelson Rodrigues, foi uma invenção do publicitário aposentado Hélio Kaltman, bem-humorado carioca que soube converter sua indignação numa memorável lição no serviço público. 

Por telefone, fez o acompanhamento quase diário do seu caso, em nome do "Dr. Palhares, do Gabinete" – o clássico Aspone – até que a reivindicação (devolução de descontos indevidos em folha) fosse atendida. 

A repórter Sandra Passarinho soube do episódio, levou-o ao movimentado Bom Dia, Brasil, daí foi para o Hoje e à noite para o Jornal Nacional, todos da TV Globo. O jornal do grupo foi atrás, fez a suíte (7/11) e, dois dias depois, realizou façanha à altura da imaginação palharesca: levou-o a Brasília e colocou-o frente a frente com o Ministro da Previdência, Reinhold Stephanes, que teve que retratar-se do pito que tentou passar no inventor do originalíssimo processo de desburocratização. 

A biografia de Kaltman esclarece muita coisa: ele foi publicitário durante duas décadas mas os seus primeiros 11 anos de trabalho foram dedicados ao jornalismo, como repórter e editor de Cidade (Última Hora e Jornal do Brasil). 

Do episódio sobram algumas perguntas: 
# Por que só os veículos das Organizações Roberto Marinho entraram no caso – mágoa pela agilidade do concorrente? Nesse caso, os que se omitiram não estão sendo cúmplices do gigantesco emaranhado burocrático montado para surrupiar o direito dos cidadãos? 

# Ou estão pendurados no rol de devedores da Previdência? E por que calam os bons pagadores diante do calote dos concorrentes? 

# O que aconteceu com os editorialistas do Estadão (domingo, 17/11), sempre tão atentos às questões de procedimentos judiciais, que enquadraram a ação de Kaltman como "crime de fazer-se passar por outra pessoa"?(1) Se esta outra pessoa não existe, não existe crime, não houve dolo nem infração. Crime é fazer do jornalismo uma função burocrática que, diga-se, o Estadão na fase Ruy Mesquita está brilhantemente tentando ultrapassar. 

Será ideológico este silêncio – solidariedade de uma corporação filiada à CUT com outra? 

Por que raramente entra nas pautas de jornais, rádios e televisões a preocupação solidária com a cidadania e o aperfeiçoamento das instituições? 

E, quando isto acontece – caso do recente "seqüestro" simulado por duas repórteres de Brasília de bebês de um berçário -, qual a razão que empurra os jornalistas ao desempenho ilegal para denunciar outros? A irregularidade só pode ser aflorada através da irregularidade? Por que não fazem como Dorrit Harazim, de Veja, que passou um mês num presídio de mulheres (com o conhecimento das autoridades) para denunciar as infernais condições carcerárias? 

O depoimento que se segue é da dupla Palhares-Kaltman, pequeno manual de jornalismo de campo, antídoto do jornalismo de frivolidades e opiniões que se converteram em paradigma. O teor não difere do pensamento exposto por Gabriel García Márquez em texto aqui transcrito (O.I., 20 de outubro) – não existem ex-jornalistas, esta não é uma profissão mas um estado de alerta.

Nota (1)– Do editorial, chamado "O dr. Palhares e o drama da Previdência", só a abertura se relaciona com o caso. Eis o primeiro parágrafo: "Para aposentar-se, o cidadão carioca Hélio Kaltman cometeu o crime de fazer-se passar por outra pessoa. Kaltman criou um personagem, o doutor Palhares, 'nomeou-o' assessor do gabinete (de quem, não disse) e, apresentando-se com esse título, apressou a tramitação da sua aposentadoria no INSS".

A falha de argumentação do editorial está na passagem entre parênteses: "de quem, não disse". Se tivesse dito, Kaltman estaria cometendo uma infração. Não tendo dito, expôs-se sempre à pergunta: "Gabinete de quem?" O fato de ela jamais ter sido feita é a pedra de toque do atestado de mau funcionamento da máquina administrativa. (M.M.)