Nosso parco elenco de heróis foi enriquecido nas duas últimas semanas pelo Dr. Palhares, sombra telefônica que empurrou em 30 dias um processo atolado no INSS há mais de 400. O nome, emprestado da galeria de Nelson Rodrigues, foi uma invenção do publicitário aposentado Hélio Kaltman, bem-humorado carioca que soube converter sua indignação numa memorável lição no serviço público.
Por telefone, fez o acompanhamento quase diário do seu caso, em nome do "Dr. Palhares, do Gabinete" – o clássico Aspone – até que a reivindicação (devolução de descontos indevidos em folha) fosse atendida.
A repórter Sandra Passarinho soube do episódio, levou-o ao movimentado Bom Dia, Brasil, daí foi para o Hoje e à noite para o Jornal Nacional, todos da TV Globo. O jornal do grupo foi atrás, fez a suíte (7/11) e, dois dias depois, realizou façanha à altura da imaginação palharesca: levou-o a Brasília e colocou-o frente a frente com o Ministro da Previdência, Reinhold Stephanes, que teve que retratar-se do pito que tentou passar no inventor do originalíssimo processo de desburocratização.
A biografia de Kaltman esclarece muita coisa: ele foi publicitário durante duas décadas mas os seus primeiros 11 anos de trabalho foram dedicados ao jornalismo, como repórter e editor de Cidade (Última Hora e Jornal do Brasil).
Do episódio sobram algumas perguntas:
# Por que só os veículos das Organizações Roberto Marinho entraram no caso – mágoa pela agilidade do concorrente? Nesse caso, os que se omitiram não estão sendo cúmplices do gigantesco emaranhado burocrático montado para surrupiar o direito dos cidadãos?
# Ou estão pendurados no rol de devedores da Previdência? E por que calam os bons pagadores diante do calote dos concorrentes?
# O que aconteceu com os editorialistas do Estadão (domingo, 17/11), sempre tão atentos às questões de procedimentos judiciais, que enquadraram a ação de Kaltman como "crime de fazer-se passar por outra pessoa"?(1) Se esta outra pessoa não existe, não existe crime, não houve dolo nem infração. Crime é fazer do jornalismo uma função burocrática que, diga-se, o Estadão na fase Ruy Mesquita está brilhantemente tentando ultrapassar.
# Será ideológico este silêncio – solidariedade de uma corporação filiada à CUT com outra?
# Por que raramente entra nas pautas de jornais, rádios e televisões a preocupação solidária com a cidadania e o aperfeiçoamento das instituições?
# E, quando isto acontece – caso do recente "seqüestro" simulado por duas repórteres de Brasília de bebês de um berçário -, qual a razão que empurra os jornalistas ao desempenho ilegal para denunciar outros? A irregularidade só pode ser aflorada através da irregularidade? Por que não fazem como Dorrit Harazim, de Veja, que passou um mês num presídio de mulheres (com o conhecimento das autoridades) para denunciar as infernais condições carcerárias?
O depoimento que se segue é da dupla Palhares-Kaltman, pequeno manual de jornalismo de campo, antídoto do jornalismo de frivolidades e opiniões que se converteram em paradigma. O teor não difere do pensamento exposto por Gabriel García Márquez em texto aqui transcrito (O.I., 20 de outubro) – não existem ex-jornalistas, esta não é uma profissão mas um estado de alerta.
Nota (1)– Do editorial, chamado "O dr. Palhares e o drama da Previdência", só a abertura se relaciona com o caso. Eis o primeiro parágrafo: "Para aposentar-se, o cidadão carioca Hélio Kaltman cometeu o crime de fazer-se passar por outra pessoa. Kaltman criou um personagem, o doutor Palhares, 'nomeou-o' assessor do gabinete (de quem, não disse) e, apresentando-se com esse título, apressou a tramitação da sua aposentadoria no INSS".
A falha de argumentação do editorial está na passagem entre parênteses: "de quem, não disse". Se tivesse dito, Kaltman estaria cometendo uma infração. Não tendo dito, expôs-se sempre à pergunta: "Gabinete de quem?" O fato de ela jamais ter sido feita é a pedra de toque do atestado de mau funcionamento da máquina administrativa. (M.M.)