Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Fraude contra fraude?

O supermercado Food Lion, subsidiária de multinacional sediada na Bélgica com umas 1.500 lojas nos EUA, ganhou um processo contra a rede ABC. 

Pelo menos desde os anos 20 a mídia usa o método da câmera escondida em certas reportagens investigativas. Precisamente o método utilizado pela ABC, que empregou um jornalista no supermercado e documentou, com a câmera escondida, o péssimo estado de higiene na manipulação de carne, peixe e outros produtos. 

O caso foi em 1992, quando o supermercado sofreu grande prejuízo e processou a ABC – não o processo tradicional de injúria e difamação. Mas um processo por fraude, violação de propriedade e quebra de lealdade. Ou seja, a ABC usou fraude e mentira (quando o jornalista falsificou um currículo e se empregou), penetrou ilegalmente nas dependências privadas do Food Lion e conclamou um empregado do supermercado (no caso, o jornalista que se infiltrou) a violar contrato de trabalho e ser desleal com o empregador. 

Advogados espertíssimos sabem que não podem ir frontalmente contra a Primeira Emenda da Constituição americana, que garante a liberdade de expressão, então mudam a tática para fraude etc. Esse processo não é o único. 
A ABC já perdeu cinco, parecidos (está recorrendo). Outras redes também estão sendo processadas nessa linha. 

Os casos suscitam a discussão de diferentes questões. A imprensa pode mentir para descobrir uma verdade? É comum o jornalista telefonar, por exemplo, e se identificar como outra coisa para obter certas informação (alguns jornais, como oThe NewYork Times, há muito não admitem tais artifícios). 

Outro caso célebre pode ser invocado – o da ameaça de processo contra uma reportagem do 60 Minutes da CBS. Os advogados e a direção da emissora obrigaram os jornalistas a suspenderem uma reportagem devastadora contra a Philip Morris porque os advogados da fábrica de cigarro disseram que moveriam um processo por conspiração – no caso, conspiração para forçar um ex-empregado dela a violar contrato de trabalho e contar coisas que ficou sabendo quando lá trabalhava. 

A prevalecer a tendência, o jornalismo sofrerá um duro golpe aqui, com Primeira Emenda e tudo. 

Atualmente, reportagens de impacto como essas do 60 Minutes só podem ser feitas por empresas superpoderosas, com grande equipe de advogados. E se continuar a tendência, nem assim. 

Ao mesmo tempo, a decisão judicial em parte se deve ao declínio da imagem da mídia junto ao público. Jornalistas, principalmente os da TV, tornaram-se celebridades. E o público acha também que se tornaram arrogantes. Aquele heroísmo de Woodward & Bernstein saiu de moda. Estão ganhando muito (as estrelas) e alguns fazem fortunas no circuito de conferências. Além disso, a onda conservadora coloca o público contra o que chama de mídia liberal. 

Outro detalhe. Argumenta-se ainda que os artifícios usados para fazer uma reportagem – fraude, mentira, câmara escondida – dão à mídia um privilégio que nem o governo e as autoridades têm. Se um detetive ou um policial recorrer a fraude, mentira e qualquer truque para obter uma prova, inclusive confissão, mais tarde a Justiça rejeita essa prova. 

Isso significa, no mínimo, que a coisa tem de ser repensada pela mídia, por mais que alegue serem tais práticas feitas em nome da saúde do consumidor, do bem público etc. 

Penso ainda numa outra questão. Reportagem de investigação é muito onerosa. Só pode ser feita pelas grandes corporações da mídia, que dispõem de recursos. Talvez elas possam adaptar-se também à nova situação, por terem os recursos. Mas cada dia estarão menos dispostas a fazer tais reportagens, dada a regra da sinergia dentro das grandes corporações. A CBS, por exemplo, é propriedade da Westinghouse. A NBC é da GE. Corporações metidas em outros negócios gigantescos, inclusive de armas, como grandes fornecedoras do Pentágono. Os interesses se misturam, como Ben Bagdikian adverte no seu O Monopólio da Mídia. Assim, só as empresas menores da mídia teriam disposição de fazer reportagens de investigação. E elas não têm recursos para tal, até porque ficará ainda mais oneroso se não puderem recorrer a certos truques.

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[Argemiro Ferreira, jornalista, de White Plains, New York, Estados Unidos]