Monday, 06 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

"Esquema", a palavra que já pode ser usada

Estourou, enfim, o escândalo dos títulos. Uma bomba que poderia ter estourado em outubro do ano passado, retardada estrategicamente para depois da votação da reeleição no Congresso – para não fazer marola. 

No final de setembro, publiquei reportagem no Jornal da Tarde mostrando um documento com uma série de operações autorizadas por Celso Pitta, quando este era Secretario de Finanças, em que o Tesouro tinha um prejuízo de RS 1,7 milhão em um único dia (ler Um mês para apurar 'Como Pitta deu prejuízo de R$ 1,7 mi em um único dia' 

Na época, apesar de já ter todas as informações, eu não podia usar aquela palavra que caracteriza os escândalos de corrupção no país: esquema. Não podia porque não tinha em mãos o relatório do Banco Central que, mais tarde, já com a CPI instalada, a imprensa revelou. 

A reportagem, que me rendeu um processo criminal – agora, pelo menos, já no âmbito apenas da Justiça Eleitoral – adiantava que o Banco Central estava realizando uma investigação a respeito de um grupo de corretoras no mercado que davam prejuízos para os cofres municipais e estaduais em todo o país. Este esquema, que atuava principalmente a partir do mercado paulistano, manipulava títulos municipais e estaduais com a conivência de agentes públicos. O dinheiro sumia dos cofres públicos em operações do mercado financeiro e ia parar no exterior, passando no caminho por empresas fantasmas e intrincadas operações na BMF (Bolsa Mercantil e de Futuros). 

Gostaria de centrar este artigo – apesar da proporção do escândalo ser bem maior – na figura do prefeito Celso Pitta. Como um secretário de Finanças dá uma ordem para vender com prejuízo títulos públicos? A pergunta parece banal, já que operações suspeitas envolvendo dinheiro público no Brasil são coisa corriqueira – só que desta vez as operações estão assinadas pelo atual prefeito da cidade de São Paulo. Quais são as corretoras escolhidas por ele para ser "beneficiadas"? O documento que obtive no início de setembro do ano passado mostrava operações com três corretoras: Contrato e Paper (ambas do Rio) e BIG, de São Paulo. Com a Contrato, a série de operações dava um prejuízo de R$ 1,7 milhão. Com a Paper e a BIG também havia prejuízo, mas ambas não foram colocadas na reportagem, entre outros motivos, pela complexidade dos cálculos e por lacunas de informação. Em resumo, o documento mostrava: Pitta estava trocando títulos de curto prazo (que valem mais, pois estão para vencer) em posse da Prefeitura por títulos de longo prazo (que valem menos) em posse de corretoras. Por si só, uma operação inexplicável. Pena que quem me passou este documento não fosse uma alta fonte do BC, pois aí meu trabalho teria sido mais fácil: ter-se-ia resumido a um vazamento. É bom lembrar que este documento está disponível na própria Secretaria Municipal de Finanças e na corretora do Banespa. 

JT publicou a reportagem no dia 27 de setembro de 96 (se fosse um mês antes, me disse um colaborador malufista certa feita, "teria sido mortal" – a expressão é dele. Por quê?). No dia 28, nem Pitta, nem Maluf comentam a reportagem. No dia 29, Maluf "responde": "É coisa de um redator petista do Jornal da Tarde". Isso não saiu na imprensa, mas aconteceu durante a inauguração de uma das obras da gestão Maluf e está gravado. Pitta tenta esclarecer: "A operação deu lucro, é uma matéria mentirosa, caluniosa". Entra no circuito o advogado contratado pela campanha malufista, Saulo Ramos, que acusa durante o horário eleitoral na TV a mim e ao então editor-executivo do JT Leão Serva de ter feito matéria caluniosa, mentirosa, difamatória. No dia seguinte, a apresentadora do programa de Pitta dizia que o Tribunal de Contas havia aprovado as contas do município durante a gestão Maluf – só que uma coisa nada tem a ver com a outra. Na reportagem, dizíamos: houve um prejuízo. E adiantávamos: está em curso uma investigação do BC. Nesse meio tempo, recebo um presentinho na redação: um envelope endereçado a mim contendo um monte de papel higiênico cheio de excrementos. 

Por que Pitta não admitiu o prejuízo como algo normal do mercado financeiro? Teria sido a melhor saída. Ganhos e prejuízos, de fato, fazem parte da lógica deste mercado. Mas não, Pitta ou seus assessores decidiram ir contra a matemática. Durante o mês de setembro levei o documento – que mostrava operações de compra e venda para as corretoras Contrato, Paper e BIG – para especialistas, gente de mercado. Estrategicamente, eu omitia a assinatura de Pitta no documento para não enviesar o cálculo. A conclusão de todos eles foi: prejuízo inexplicável. Tinha em mãos algo inexplicável: um secretário de Finanças autorizando operações lesivas a seus cofres. Por quê? 

A operação específica do documento em questão, como deixou escapar um dos técnicos do Tribunal de Contas que analisou o documento posteriormente, foi um "erro estratégico". Como assim, erro estratégico?, perguntei. "Porque nunca imaginávamos que ia parar nas mãos da imprensa", foi a inacreditável resposta que ouvi! O erro, vender e comprar os mesmos títulos na mesma hora, e com prejuízo para a Prefeitura. É um tipo de operação que poderia ter sido feita de outra maneira sem ser tão evidente o prejuízo. Foi de fato, para falar em português claro, uma "lambança" dos responsáveis pela operação. Em outra operação revelada pelo jornal na época, havia um prejuízo em favor da corretora Negocial depois que o título percorria um longo trajeto até voltar para os cofres municipais… 

Por mais que Pitta diga que não sabia das atividades paralelas do seu diretor de Dívida Pública, Wagner Batista Ramos (se não disse ainda, é o que vai começar a dizer), como explicar que ele, Pitta, tenha assinado um documento em que há um prejuízo matematicamente incontestável para os cofres públicos? 

Não insisto no documento revelado pelo JT para valorizar a reportagem do final de setembro (afinal, tantas coisas estão vindo à tona diariamente, e tantas coisas grandes, por que insistir em um documento?). Insisto porque nele está escrito que há um prejuízo e nele há uma assinatura que é a de Pitta. E Pitta é um homem publico, que deveria, quando secretario de Finanças, ter zelado pelo dinheiro nosso, dos contribuintes.

E o pior da história: o que é prejuízo para a Prefeitura é um lucro para uma instituição de fundo de quintal, chamada Contrato, cujo diretor já estava sendo processado pela Procuradoria da República do Rio por envolvimento em fraudes em 1990, exatamente com títulos públicos. E cujos diretores, depois da liquidação da empresa pelo BC, há poucos dias, desapareceram. 

Pitta pode alegar que não sabia das atividades paralelas de Wagner Batista Ramos; no entanto, todas estas ordens com operações em que aparecem prejuízo levam, pouco abaixo da assinatura de Pitta, uma pequena rubrica – WBR. A operação que o JT noticiou não traz a rubrica WBR, como ele mesmo contou, por um acaso: "Nesse dia eu não estava lá, mas o meu pessoal estava." 

E por que, um dia antes de sair a reportagem, Pitta, designou WBR para responder à denúncia? Não só isso: assinou, sustentou as explicações de WBR durante meses a fio!!! Agora ele diz que vai "investigar" a atuação de WBR? Como assim? Explicações nervosas, cheias de contradições, dadas na redação do JT por WBR dois dias antes da publicação da reportagem transformaram-se nas explicações oficiais de Pitta durante meses. 

Pois bem, Pitta foi na contramão, se complicou ao usar a palavra "lucro" para explicar o inexplicável. Não, a operação não deu lucro, esse é o problema. Depois, para a revista Veja, dias depois do primeiro turno, abandonou o discurso do lucro e passou a falar em "dar liquidez aos títulos". Ou seja: ele fez uma troca de títulos para que instituições não fossem à falência com títulos municipais, o que desvalorizaria tais títulos. Seria até plausível, se não fosse feita a pergunta: mas que instituições? A Contrato, cujo nome já estava envolvido no final dos anos 80 no chamado escândalo Cecatto (vejam a coincidência: escândalo em que títulos municipais de São Paulo saíam e voltavam para a Prefeitura com prejuízos para o erário e lucros que iam parar em empresas fantasmas e depois no exterior. Isso em 1987). Salvar a BIG, que em 1995 foi liquidada pelo BC por irregularidades? Ou a Paper, conhecida pelos entendidos no mercado carioca como uma "empresa de falcatrua"?

O pior: com muita boa vontade o argumento de Pitta teria alguma consistência se o título no início daquele 1 de dezembro de 94 estivesse com a corretora. Mas não, como revelou o BC, o título estava com a própria Prefeitura. Saiu e voltou para a Prefeitura o mesmo título. Isso derrubava outro argumento de Pitta para explicar o inexplicável: o da liquidez. Afinal, dar liquidez a um título só faz sentido se este título está no mercado. Mas o título não estava no mercado.

Entramos no mês de outubro, o candidato do governo federal não vai ao segundo turno e a historia morre. O BC, nós sabíamos, tinha um relatório com muita coisa já rastreada. Dinheiro que, via BMF, ia parar nas mãos de empresas fantasmas etc. etc. etc. O BC ficou quieto. Está certo, o BC não é partido político, mas por que segurou seu relatório tanto tempo?

Escrevi "a historia morre", mas houve nesse meio tempo uma reportagem publicada por Elvira Lobato na Folha de S.Paulo que é importante, apesar de, erroneamente, ter sido dada sem destaque. Ela revelava que, quando da colocação dos títulos pela Prefeitura no mercado, em 1991, houve um baita descontão (ou seja, foram vendidos abaixo do preço de mercado). Isto é fundamental para se entender o ciclo todo destes títulos. O meu documento mostrava que a Prefeitura recomprava, em 94, títulos postos em mercado em 91, com preços de mercado. Ou seja: quando colocou os títulos, a Prefeitura deu um desconto, e quando recomprou, recomprou pelo preço de mercado. 

Qual o sentido disso? Esta relação, na época, não foi feita. Ninguém se perguntou isso.

Em outubro a nova explicação de Pitta foi que havíamos invertido a ordem das operações. Falso. O BC, ao responder a um requerimento do senador Eduardo Suplicy contendo sete perguntas (requerimento que se perdeu em Brasília no dia 11 de novembro, comicamente), traz respostas evasivas, mas pelo menos uma informação reveladora: o título no final do dia estava com a Prefeitura. Pelas explicações de Pitta, os títulos estariam com a corretora (única maneira de partir para o argumento da "liquidez"). Estou falando grego? É mesmo difícil entender, e é justamente nisso que esse tipo de operação se baseia: é o mais complicada possível, para que não seja detectada nem com o maior esforço. Não se trata aqui de economês, mas de um jogo de lógica.

Outra pergunta interessante, para quem acompanha o caso: afinal, por que existem as cartas assinadas por Pitta? Estas cartas existem porque operadores da Banespa Corretora, que na época colocavam esses títulos no mercado sob ordens da Prefeitura, estranharam o volume das operações feitas com instituições absolutamente desconhecidas e de pequeno porte. Seguindo orientações do BC, a corretora continuou com as operações, mas com uma condição: que as ordens fossem dadas por escrito. Cópias de todas estas cartas estão na Secretaria de Finanças.

Enfim, ou Pitta não sabia do que se passava debaixo do seu nariz ou era conivente com algo muito feio. Mesmo assim, fica a pergunta: por que ele assinou um documento em que aparece um prejuízo para os cofres públicos de R$ 1,7 milhão? Por quê?