Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Dois relatos edificantes e algumas perguntas necessárias

Abre. 


Um relato edificante… 


– Trabalho em uma editoria que, em princípio, não estava encarregada da cobertura do acidente. No primeiro dia, escapei à febre que assaltou a redação. No dia seguinte, porém, fui convocado pela direção do jornal para cumprir uma pauta especial. Com instruções precisas. 

Eu não poderia ser reconhecido como jornalista pelos funcionários da TAM. Nem por outros jornalistas. Deveria passar por parente de uma das vítimas do vôo 402. Iria a São Paulo no avião dos parentes reais. Me hospedaria no mesmo lugar em que seriam hospedados os parentes reais. 

Segundo a pauta, para compartilhar sentimentos e experiências com os parentes reais. Saber de fato como a TAM estava tratando os parentes reais, para além dos releases. Acompanhar o reconhecimento dos corpos. E descrever em detalhes, carregando na emoção, o drama dos parentes reais. 

Na hora em que ouvi a descrição da pauta, acrescentei, por minha conta, outros aspectos. Invadir a privacidade dos parentes reais, sem autorização e por meio de fraude. Fingir sentimentos. Teclar lágrimas, ao invés de palavras, como se não bastassem as lágrimas reais. Jornalismo real? 

O ápice do constrangimento aconteceu no avião, um modelo idêntico ao que desabou no Jabaquara. Enganei a TAM, enganei colegas, enganei a família, neste caso por vergonha. Mas não me enganei quando reconheci outros jornalistas, em missão análoga, igualmente envergonhados. Ou não. 


Corta. 


Outro relato edificante… 


– Passei o dia no Santos Dumont. O jornal queria imagens de dor, de sofrimento, de desespero. Emblemas do acidente e do drama dos parentes. Havia mais três dezenas de jornalistas comigo. Cada pessoa que entrava no saguão era um "parente" ou "amigo" em potencial. Um alvo, portanto. 

No início, a abordagem era tímida. O senhor por acaso tem grau de parentesco com uma vítima do desastre? A senhora conhecia um passageiro do vôo 402? Às vezes, olhos carregados tornavam desnecessárias as perguntas. Claro que aquela de óculos escuros é "parente". Ou "amiga". 

Com o passar do tempo, e à medida que os horários de fechamento se aproximavam, a abordagem tornava-se mais e mais agressiva. Os "parentes" e "amigos" eram cercados e inquiridos e iluminados como se faz com celebridades na entrada do Oscar. Ou com bandidos na porta da DP. 

Um "parente" sentiu-se invadido e desrespeitado. Pediu que a malta o deixasse quieto. Não foi atendido. Elevou a voz. Alguns, como eu, se resignaram. Outros sustentaram a perseguição. Até que veio a explosão. E os socos. No fim, houve quem reclamasse do destempero do sujeito. 


Corta. 


Que não se pergunte quem são os autores dos relatos. Nem se a forma com que tais relatos aparecem aqui corresponde à maneira com que vieram à luz. Ou que foram percebidos. Que simplesmente se aceite a veracidade dos fatos retratados. Porque verdadeiros, em essência, o são. 

E que se façam outras perguntas. Fraude. Invasão de privacidade. Desrespeito à dor. Indiferença. Do que se trata? Seriam pecadilhos necessários ao cumprimento do dever de informar? Deslizes eventuais, que razões específicas justificam? O único jornalismo possível? 


Corta.

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[Sergio Sá Leitão, jornalista]

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