A cobertura do sinistro com o Fokker da TAM começou minutos depois do acidente e mobilizou a nação inteira durante dois dias. Jornalistas sabem como agir nestas desgraças, faz parte do seu instinto e repertório profissional movimentar-se dentro do imprevisto. Em jornais, revistas, rádios e TVs todos são especialistas em Crisis Management, Gestão de Emergências, mesmo em conjunturas como a nossa, onde o jornalismo de gabinete e o jornalismo do gravador estão substituindo o jornalismo de campo e da ação.
Este Observatório não se destina a examinar os méritos técnico-profissionais dos veículos, coberturas e jornalistas. Quer acompanhar seu desempenho no plano ético-social, na esfera de seus compromissos públicos. Por esta razão não cabem aqui os galardões para os que se destacaram, mesmo porque a tragédia dos outros é a hora máxima do jornalista – todos se esmeraram para emocionar e comover.
Cabe apenas uma menção à Gazeta Mercantil, jornal especializado em economia & negócios e que raras vezes sai do seu universo temático e de seu ritmo à cata das palpitações da rua.
Sem recorrer a manchetes garrafais e recursos retóricos, foi o único veículo a humanizar e personalizar a tragédia – simplesmente porque a maioria dos passageiros eram executivos de grandes bancos e multinacionais (que preferem os vôos da TAM e da Rio-Sul, excluídos da Ponte Aérea e, por isso, com hora e lugar reservado).
Enquanto, no dia seguinte (1/11), todos se ocupavam da numerologia macabra, o fleugmático jornal de cifras e dados dramatizou à sua maneira, contando num terço apenas da primeira página como se desenrolou a habitual reunião matinal do Unibanco, que exatamente naquela hora estava perdendo oito de seus quadros. Nas páginas internas (duas somente), o único jornal que sabe (porque precisa) contextualizar suas matérias mostrou como se devem usar os recursos do artesanato biográfico para fazer bom jornalismo – traçou o perfil de 21 dos 89 passageiros. Certamente eram seus personagens.
Mas o aspecto que aqui cabe ressaltar e desenvolver (que diz respeito aos compromissos básicos da imprensa) é o do timing impróprio do senso trágico do nosso jornalismo. A percepção da tragédia iminente deve anteceder e substituir-se à comoção desmedida pela tragédia acontecida.
A capacidade de adiantar-se aos desenlaces necessita de antenas permanentemente ligadas, sensibilidade à flor da pele, espíritos tensos, almas inquietas. Só assim pode a imprensa assumir-se como um sistema de alarme preventivo da sociedade.
Isto significa uma alteração radical no comportamento e na disposição dos profissionais da imprensa. Significa deixar de lado os modismosyuppies, a inclinação para confundir-se com executivos que desligam o laptop no fim do expediente. Significa desburocratizar os procedimentos da redação adicionando-lhes o ingrediente essencial: disponibilidade total para a coisa pública. Vocação.
Mais útil do que comover depois da sangueira é a sensibilidade capaz de advertir para os perigos que se articulam. Exemplos:
# Quando foi a última vez que a mídia cuidou dos perigos do aeroporto de São Paulo (o mais movimentado do país em número de passageiros) encravado dentro da cidade?
# Qual o jornal, revista, rádio ou TV que denunciou o cartel brasileiro de transporte aéreo, comandado pela Varig e que tem o beneplácito – senão a cumplicidade – da Aeronáutica? A ironia – que talvez explique no futuro muita coisa – é que a TAM justamente estava tentando enfrentar o cartel.
# Quando se cobrou do governo uma solução ferroviária (privada ou pública) de grande velocidade para o eixo Rio-São Paulo? Idem, para a ligação superveloz Cumbica-Centro de São Paulo?
# Quem indagou sobre as medidas concretas tomadas pelo D.A.C. depois da queda do jatinho dos Mamonas Assassinas?
# Quem tentou explicar por que em dias de nevoeiro fecham-se os aeroportos do Centro-Sul apenas para aeronaves de empresas nacionais, enquanto as internacionais chegam e partem sem problemas?
# Sem que a pergunta deva ser entendida como insinuação de denúncia – mas quantos jornalistas perguntaram ao comandante Rolim Amaro, presidente da TAM, 24 horas antes da tragédia, quando anunciou seus fantásticos planos de expansão, se não comprometeriam os serviços de manutenção e segurança?
# Quando, há 10 dias, a Varig distribuiu para a imprensa ridículo release anunciando gastos de 16 milhões para reformular o visual dos seus aviões, algum jornal ou jornalista ousou perguntar se o investimento não seria mais útil em serviços mais essenciais? As suas quatro páginas coloridas e douradas na última edição de Veja são um escárnio aos mortos. O avião que caiu era da TAM, mas os problemas a enfrentar são do cartel de empresas aéreas.
# Qual o repórter brasileiro que toma um avião – em férias ou a serviço – e anota todas as desconfianças que despertam sua atenção a partir do check-in?
# E nas estradas – alguém já perguntou por que só no Brasil circulam grandes caminhões carregando milhares de garrafas em carrocerias abertas?
# E em nossas cidades, qual o jornal ou rádio que cobra com veemência e insistência os descalabros viários – sinais avariados, sinalização destruída, buracos clandestinos jamais tapados?
Diante dos caixões enfileirados, de nada servem os malabarismos investigativos, as hipóteses de algibeira, os fuxicos de sala de espera. A dúvida a posteriori é disfarce e desculpa para a carência de desassossego a priori.
Para evitar que as bruxas desçam com tanta freqüência para a sua colheita de vítimas, é preciso que na agenda dos jornalistas haja menos almoços e na sua digestão um pouco mais de azia. É a sua obrigação social, sua responsabilidade pública, seu senso de solidariedade para com aqueles que lhes confiaram a tarefa de viver de olhos abertos.
A grande reunião de pauta é aquela que se faz consigo mesmo, mordido pela intranqüilidade, temente da vida. O resto é burocracia empresarial e tecnocrática que a azáfama do day-after das grandes tragédias apenas disfarça.