Friday, 03 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

A apoteose da Lei de Gérson

MALUF NA FOLHA

(*)

Pergunte um repórter ao doutor Paulo Maluf que horas são e ele responderá que é inocente, ou que o PT não presta, ou que se dependesse dele a população estaria mais segura ? ou qualquer coisa que naquele momento lhe convenha dizer.

Raros políticos brasileiros são capazes de competir com o ex-prefeito de São Paulo em matéria de dar a perguntas incômodas as respostas que lhe sejam confortáveis, pouco importando se estas têm algo a ver com aquelas.

Maluf é um caso extremo da Lei de Gérson aplicada com sucesso ao jornalismo pingue-pongue, que no Brasil está cada vez mais para a imprensa de domingo como a macarronada para o almoço familiar do mesmo dia ? o que parece dar razão a quem acha que a entrevista é a forma mais preguiçosa de reportagem.

Com o ego desmedido e a autocensura atrofiada, Maluf não tem a menor dificuldade em tirar potes de vantagem de uma situação que, na esmagadora maioria das vezes, já costuma favorecer antes quem responde do que quem pergunta.

Que isso aconteça nas entrevistas improvisadas ? as "cenas de jornalismo explícito", na deliciosa expressão do jornalista Clovis Rossi ? é previsível e talvez inevitável. Cercado pela horda, que fica batendo cabeça, gravadores e microfones, o entrevistado deve ter apenas a precaução de não dizer nada que possa ser usado contra ele pelos caçadores de sound bites nas ilhas de edição.

Mas que aquilo aconteça nas entrevistas planejadas ? em data, hora e lugar quase sempre escolhidos pelo entrevistado, o que tende a lhe proporcionar um ganho estratégico de partida ? é um bom argumento para a tese de que, ao contrário de seus pares ingleses e americanos, por exemplo, o repórter brasileiro late muito e morde pouco.

Tipicamente, o perguntador se comporta como um coletor ? não um contestador ? de declarações. Por não dominar suficientemente os assuntos. Por não ter feito direito a lição de casa. Por afinidade com o entrevistado. Ou por temor reverencial. Carregando um pouco ? mas só um pouco ? nas tintas, é o caso de dizer que, mesmo quando o entrevistador cumpre o dever de ir para o confronto com uma pauta de perguntas desafiadoras, o gás acaba logo: o entrevistado diz lá umas tantas quantas coisas em cada caso e a vida segue.

Contam-se nos dedos sujos de tinta do pobre leitor de jornal brasileiro quantas vezes ele é premiado com uma intervenção do tipo "O senhor não respondeu à pergunta" ou "O que o senhor está dizendo é o oposto do que o senhor mesmo disse…".

Na TV, então, a norma é tratar o entrevistado como se ele estivesse fazendo um favor ao aceitar o convite da produção do programa ? ou quando o jornalista-responsável parece ter alguma aversão pessoal à busca da verdade.

O caso-limite talvez tenha sido o telegrama de desculpas enviado por um diretor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo ao então governador de Pernambuco, Miguel Arraes, porque o jornalista que o recebeu no Opinião Nacional cometeu o crime de lesa-entrevistado ao fazer-lhe uma pergunta sobre seus negócios de exílio com a Petrobrás. O entrevistador, naturalmente, se demitiu.

Entrevistas também se negociam previamente. O entrevistado pode aceitar a idéia do pingue-pongue, desde que o pingue exclua determinado assunto. Ou o entrevistador pode avisar o entrevistado que o jogo só sairá em letra de forma se ele der em on o apimentado pongue que vive dando em off.

Nada de necessariamente errado com isso. Cada parte tomará a sua decisão depois de um cálculo de custo-benefício. Pensando na obrigação da imprensa de servir o público, o máximo que se pode desejar é que, na ponta de quem pergunta, o cálculo comece pelo interesse do leitor.

Eis, de forma esquemática, o indispensável contexto do assunto deste comentário, que abre falando em Paulo Maluf. Isso porque, na terça-feira passada [28/8], ele conseguiu uma proeza que se imaginaria impossível na grande imprensa brasileira: graças à Folha de S.Paulo, Maluf aplicou na íntegra a Lei de Gérson ao gênero "entrevista à imprensa".

É simples: a Folha queria que o ex-prefeito se manifestasse sobre as contas bancárias que teria no paraíso fiscal da Ilha de Jersey. Maluf, segundo o próprio jornal, exigiu: 1) perguntas e respostas por escrito, isto é "fechadas" e publicadas sem cortes; 2) nem menos nem mais de 20 perguntas; 3) destas, apenas cinco sobre Jersey; 4) as outras 15, em partes iguais, sobre economia brasileira, prefeitura de São Paulo e governo estadual.

Só faltou ele mesmo fazer as perguntas. Ou, pensando melhor, não faltou:

"Como o sr. acha que o país vai estar daqui a um ano?"

"O sr. está colaborando com o racionamento de energia? Qual foi a queda de consumo na sua residência?"

"Qual a avaliação que o sr. faz da administração Marta Suplicy?"

"O sr. é candidato ao governo do estado de São Paulo em 2002?"

"Na sua opinião, o principal problema do Estado continua sendo a segurança?"

"Qual a sua avaliação sobre o aditamento de 70% na obra do Rodoanel, acima do que prevê a lei de licitações (teto de 25%)?"

"No sentido de dar voz à versão de Maluf", informou o jornal em pedregoso português, "a Folha concordou com a proposta do ex-prefeito". E, pasme leitor, parece dizer o texto, "mesmo assim ele não aproveitou essa oportunidade para esclarecer as dúvidas sobre Jersey. Suas respostas sobre o caso são, na maioria, evasivas".

Tsk, tsk, tsk. Esse Maluf joga a sorte grande pela janela. O jornal de maior circulação do país lhe dá a chance de contar a verdade, toda a verdade e nada mais do que a verdade sobre suas relações com o Citibank Jersey e não é que o homem prefere se sair com umas tantas evasivas!

Se a turma do Casseta & Planeta resolvesse publicar uma paródia do Manual de Redação da Folha, poderia usar como epígrafe, sem mudar uma vírgula, aquele parágrafo explicativo. E se o humorista José Simão escrevesse para este Observatório, poderia dizer que a Folha é o jornal da piada pronta.

Má hora

Seria engraçado, se não fosse triste. Ao se submeter às cláusulas leoninas do contrato malufista ? esperando o quê, uma contrita confissão, a senha da conta, o segredo do cofre? ? o jornal deu de bandeja uma página inteira de autopromoção ao político atolado em três processos criminais, três ações civis e um inquérito civil, por sua passagem pela prefeitura paulistana.

De brinde, em três colunas (20 x 14,5 cm) uma foto sorridente, tranqüilizadora, tomada no depoimento à CPI da Dívida Pública, oito dias antes, na Câmara Municipal de São Paulo, que ele poderia dar de presente a dona Sílvia ou usar como material de campanha.

Sobre dinheiro no exterior, Maluf falou, ou melhor, escreveu, 229 palavras. Sobre assuntos municipais, 466. Sobre economia, 524. Sobre questões estaduais, 715 ? das quais 403 sobre segurança.

Ou seja, Maluf dedicou ao espinhoso leitmotiv da entrevista apenas pouco mais de 1/10 das 1.934 palavras com que pôde se esparramar ? com a liberdade irrestrita que a mídia só usa conceder aos seus happy few ? pela página A8 da edição de 28 de agosto de 2001 do jornal que tem o rabo preso com o leitor. Haja Lei de Gérson.

Em defesa da Folha, uma observação: ela não escondeu desse leitor o acordo que em má hora resolveu fazer ? em prejuízo dele e em benefício do político brasileiro recordista de denúncias de corrupção.

(*) Jornalista

    
                  

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