Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A comunicação e as disjunções

INFORMAÇÃO & SATURAÇÃO

Ivo Lucchesi (*)

Palavras, imagens e sons, ao que parece, não mais pertencem ao reino da "significação". O reinado de agora está entregue ao conformismo e ao conforto gerados pela dinastia da "informação". Assim, velocidade e objetividade suprem carências outrora preenchidas pela criticidade e pela interpretação, razão por que, nos dois últimos artigos [remissões abaixo], foram revistos conceitos de espaço e tempo, sob a tutela exercida pelos sistemas midiáticos e reafirmados pelos sistemas educacionais, o que amplia sensivelmente a capacidade de perpetuação dos efeitos implementados, em escala crescente nas últimas décadas.

A cultura das desconexões

A julgar pelo que se faz reconhecível nas cenas do cotidiano, torna-se patente (e patético) quanto a "vida moderna" está à mercê do que classificamos de "culto à desconexão", isto é, o conjunto de procedimentos e de comportamentos tanto individuais quanto societários sob a regência de instrumentos voltados a, em nome da comodidade e da necessidade, promoverem freqüentes disjunções na subjetividade, bem como nos relacionamentos interpessoais. Nesse novo modo de relacionamento entre ser e realidade, instalou-se, com apoio das sofisticadas ferramentas tecnológicas, um novo "espaço" no qual a função primordial se caracteriza por cortar fluxos, seja de pensamento, seja de conversa. Com o intuito de dar melhor visibilidade concreta ao que possa parecer uma abstração inconseqüente, proponho breve mapeamento de situações extraídas do cotidiano:

1) Celulares e e-mails disparam freneticamente de todos os pontos e em todas as direções. Em favor de raras ocorrências de efetiva prestabilidade, milhares de pessoas cedem o domínio de sua privacidade e de sua autonomia. Perdem de vista o fato de que a ansiedade comunicativa finda por restringir a serenidade requerida pelo estado de liberdade. Ou seja, no atual quadro, a qualquer instante, a concentração em si ou em algo pode sofrer um refluxo. Sobressalto e excitação produzidos por agentes externos ditam a nova regra: a subserviência à disponibilidade;

2) Comerciais se sucedem nas transmissões televisivas e radiofônicas, desconectando abruptamente emoções e/ou pensamentos a que a subjetividade receptora estava entregue, impondo à sua revelia a suspensão de seu envolvimento, o que, de certo modo, afora uma violação ética, enseja um ato de violência;

3) A internet, com toda a facilidade do que está a oferecer, os usuários se sentem, já educados pelo assédio das interrupções, estimulados a deslizarem de um sítio para outro(s), independentemente de haver entre si correlações temáticas ou funcionais. No "mundo do cyberspace", a franquia é absoluta e a facilidade de conexão é tão repetida quanto a de desconexão. Nele, nada precisa de maior enraizamento, perdendo-se, pois, a continuidade de um estado que, se preservado e prorrogado, possibilitaria a emergência de nova percepção;

4) Imagens irrompem de todas as partes e sob todas as formas (letreiros luminosos, cartazes, outdoors, painéis, vitrinas, deteriorando, no "viajante do olhar", a capacidade de selecionar e fixar aquilo que, efetivamente, haveria de merecê-lo;

5) Músicas invadem os mais diferentes ambientes, multiplicando tanto a banalização de que muitas delas são portadoras quanto a trivialização daquelas que solicitariam uma audição reservada e especial. A música, quando invasora, faz perder o sentido de uma experiência estética. Em lugar desta, prolifera o embrutecimento das relações, até o indivíduo não mais ser capaz de fruir a experiência estética, simplesmente por não saber como fazê-lo;

6) A tagarelice repetitiva presente em exaustivos programas nos quais supostamente alguém é entrevistado. Raros são aqueles que rigorosamente se fazem merecedores de atenção, seja pelo conteúdo, seja pelo modo de condução da verdadeira entrevista;

7) A indisciplina quanto ao descumprimento de horários parece uma norma de caráter institucional. A "vida moderna", agitada e repleta de solicitações, é sempre invocada para justificar o desrespeito a acordos entre as partes. Os processos comunicacionais ficam sujeitos a toda sorte de descontinuidade, o que inclui "shows", peças de teatro, horários de filmes, de aulas, etc. Tudo pode ser retardado, interrompido, visto de modo entrecortado, acompanhado irregularmente… enfim, uma vida destituída de vínculos. Sem estes, esvaem-se o nexo, o sentido, a compreensão do quanto a vida se constrói como rede de signos com que se escreve uma narrativa;

8) O estímulo a práticas radicais, sob intenso patrocínio dos sistemas midiáticos, vende a idéia de que a vida é movida pela descarga de adrenalina. A agitação intensa deve somar-se ao perigo. Este é o lema que subliminarmente dá suporte à propaganda oriunda de programas, fotos, reportagens. Num segundo momento, outros tantos programas, fotos e reportagens dão conta de vidas destroçadas, interrompidas bruscamente ou desgraçadas. O sistema midiático não se altera, registrando tudo sem o menor constrangimento: primeiro mostra a experiência exuberante (extravagante) e depois mostra a fatalidade. Da excitante gargalhada pelo "grandioso feito" se vai às lágrimas intensas pela irreparável e imerecida perda de uma vida, tão cheia de promessa…

As situações descritas, todas bastante presentes e constantes, na turbulência da qual se alimenta uma sociedade centrada na alucinação do real, perfilam comportamentos a cujos estados mentais correspondem perda de memória, incapacidade de concentração mais duradoura, afetos desenraizados, inabilidade em projetar o curso da vida, entre outros desconfortáveis modos de estar e de ser. O somatório dessas fórmulas redundam em incompreensões, desentendimentos, negligenciamento ético, relações desleixadas. Tudo potencializa a ilusão que, por fim, quando tirada a máscara da vida falsificada, fica exposta a dor da frustração, agravada pelo fato de sua procedência não ser identificada, em razão da própria incapacidade de analisar e de interpretar uma "narrativa retalhada".

O mal-estar das disjunções e as conseqüencias

O diagnóstico até aqui proposto aponta claramente para a espiral do infortúnio existencial. Não há na paisagem do futuro possibilidade de restauração do desejado equilíbrio, sem o preço penoso de uma radical "descontaminação". Não é apenas o ar puro que a natureza fornece a encontrar-se sob severa ameaça. Além dele ? e principalmente ? é a impureza do ar presente nos "pulmões da existência", que, em lugar de "oxigenados" pelos valores da real criação com a qual a vida pode e deve ser celebrada, se encontram oxidados pelos "radicais livres" multiplicados em exibicionistas, narcisistas improdutivos, especuladores, aventureiros do mercado, carreiristas, falsários, "piratas", e a vasta legião integrante do "baixo-clero" da indigência intelectual, sempre pronta a disparar contra a inteligência ativa a retórica da simplificação, tentando com isso minar a eficácia de uma razão argumentativa. A raiz do "mal-estar" não se encontra alojada na frustração ante o que não se consegue atingir ou realizar. Afinal, num certo sentido, em todas as épocas, tal sintoma se faz presente. Que seria da arte, se na sua mais profunda origem não houvesse um desconforto incurável? As grandes e autênticas obras de arte provêm desse "magma subjetivo" a queimar as entranhas do inconformismo. Então a questão não reside na existência do "mal-estar". Sobre este, aliás, dele bem tratou Freud. O problema que, na sociedade atual, se agiganta (e fica exposto na superfície do cotidiano), é oriundo dessa mesma superfície condenada à superficialidade de tudo. Nada, portanto, tem gravidade para além das atribulações individuais que, individualmente, também julgam poderem administrar, ante a oferta de tantas "estratégias da salvação" (ou da "purificação).

O mal-estar de que aqui se fala é sistêmico; atua em bloco. Não há remédio, sem desconectar a cultura das disjunções. Não se cria um processo sistêmico para combater em igualdade de condições, sem antes a consciência do sujeito promover a ruptura. Primeiramente, a remoção do mal-estar há de se dar em escala individual, para, num segundo momento, haver a recusa majoritária. Inverter essa ordem de prioridade é arriscar numa aventura de uma ilusão inconseqüente da qual pode ressurgir a "monstruosidade" ainda mais fortalecida…

(*) Ensaísta, doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular da Facha, co-editor e participante do programa Letras & Mídias (Universidade Estácio de Sá), exibido mensalmente pela UTV/RJ.

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