Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A cor da cara de fome no Brasil

VISIBILIDADE ZERO

Antônio José do Espírito Santo (*)

Entre outras e mais dramáticas conseqüências, a pobreza continuada e generalizada, na qual se permite que viva grande parte de nossa população, criou para a mídia do Brasil uma espécie de perturbadora "impropriedade estética", causada pela contradição evidente entre a imagem real de povo não-branco que efetivamente somos e aquela imagem virtual, manipulada por intermédio de diversos artifícios, que insistimos em propalar para mundo como sendo o nosso look ideal.

Por que nos espaços da mídia (vista aqui como o conjunto de mecanismos de difusão social e cultural independentes) o Brasil aparece sempre assim, mascarado, fantasiado de uma outra coisa que não é ele mesmo?

Acreditem, esta não é uma conversa de filigranas ou irrelevâncias. Visibilidade é um axioma midiático por excelência, já que, a rigor, se um fato ou problema está invisível é porque ele não está acontecendo ou simplesmente jamais existiu.

Envergonhada talvez de nossa imagem real, nossa mídia ? expressão mais evidente da maneira peculiar que a gente tem de olhar a nossa própria cara em espelhos simbólicos ? tem demonstrado persistente intenção de falsear, justamente, o signo essencial de nossa personalidade: nosso biotipo, a cor de nossa pele, os traços físicos mais marcantes, aquela face original que todo povo que se preza costuma assumir como orgulho nacional e patrimônio estético intocável.

Racismo é pouco ? e vago ? para definir esta estranha disposição de nossos meios de difusão cultural para, sub-repticiamente, ir sabotando a nossa auto-imagem. Que diabo de paranóia seria esta? Por que ficar durante séculos como uma espécie de "país michael jackson", tentando esconder debaixo de um tapete pra lá de puído o perfil mulato inzoneiro da maioria de nossos charmosos habitantes? Seríamos uma sociedade acometida por uma espécie de vitiligo imoral?

Você já viu a cara do João Cândido, o almirante negro da Revolta da Chibata, um herói brasileiro tão ou mais significativo do que aquele tristonho alferes Tiradentes? E a cara do negro Oswaldão, aquele líder militar da guerrilha do Araguaia, aquela revolta que deu errado mas que contribuiu para a escalação de, pelo menos, um de seus sobreviventes para o primeiro escalão do atual governo do país? Como se poderá forjar um verdadeiro orgulho nacional, amor à pátria, sem a ampla difusão da imagem destes heróis de nossa nacionalidade, tenham lá a cor que tiverem?

Não se pode negar que, no âmbito de nossa mídia ligeira, aquela voltada para o jornalismo superficial e comezinho do dia-a-dia, o merchandising rasteiro, o jingle espirituoso, o outdoor de subúrbio, alguns traços, ainda que tímidos, de nosso perfil étnico têm aparecido.

Neste jornalismo ligeiro predomina, infelizmente, uma defensiva e, apesar de justificável, raivosa depreciação do outro. A pauta, como sempre, tem sido aquele rol de personagens não-brancos, atores eternos e subalternos de nossas piores mazelas, da violência urbana, do crime "organizado", do jovem traficante armado com um fuzil de guerra, bandido assassino, defendido pela jovem favelada de shortinho leg, com o bebê no colo, aquela que joga pedras no poder público, como uma louca, até o grand finale: a hollywoodiana imagem da carcaça retorcida de um ônibus em chamas.

Puro terrorismo (ou contra-terrorismo, como se queira).

Responda rápido: o que faria se, por culpa da simples omissão do poder público, você, mãe prematura de um adolescente, visse seu filho ser transformado num psicopata guerrilheiro sem causa, drogado, bicho a ser caçado vivo ou morto, por aquele mesmo poder público que prefere gastar 10 vezes mais com a morte ou a prisão dele do que com a escola, a saúde e o primeiro emprego, direitos elementares que teriam feito talvez do seu menino um jovem perfeitamente normal?

Alguém precisa avaliar se esta mal dissimulada política de extermínio tem uma boa relação de custo-benefício. Afinal, ao que parece, uma caixa de balas de fuzil está pela hora da morte. Câmaras de gás sairiam muito mais em conta…

Para distensionar os ânimos e os espíritos, no restante desta mídia ligeira, nos anúncios de magazines femininos, nos programas de fofocas televisivas, nos outdoors etc. é concedido mais espaço a aspectos, digamos assim, arejados e mundanos: belas mulatas ? geralmente sós ?, jovens negros musculosos ? acompanhados por falsas louras desinibidas ? mulatos, morenos, morenas, muitas morenas, diversas imagens "etnicamente corretas", no fundo apenas apelativas, porque subliminarmente tendem a associar raça negra e mestiçagem a sexo aberrante, como anúncio de açougue light, animalizando o outro, do mesmo modo como se fazia no tempo da escravidão. É coisa de gente normal, isso?

Legado imagético

Estereotipando e generalizando na sua cobertura sobre o dia-a-dia do Brasil real, os aspectos mais exteriores de nossa dramática questão social ? muitas vezes de maneira histérica e sensacionalista ?, tornando desta forma totalmente invisíveis todos os outros aspectos positivos, o cotidiano e a cultura das pessoas não-brancas deste país, nossa mídia nada mais faz do que propaganda de guerra, incitando a opinião pública normal contra o outro, o anormal, mais ou menos como o fez a imprensa standard de Bush, justificando bombas e barbaridades na invasão do Iraque.

Seriam cidadãos americanos os nossos brancos normais? Seriam anormais fedayns iraquianos os nossos marginais não-brancos? Claro que não.

Como agravante, naqueles aspectos sociologicamente mais profundos que caracterizam a aceitação de nossa imagem nacional efetiva, não é difícil detectar-se a existência daqueles sutis artifícios usados para identificar e separar as coisas apropriadas para serem mostradas daquelas que devem ser cuidadosamente maquiadas, editadas ou, simplesmente, escondidas dos olhos das pessoas "de bem".

Um conjunto de elementos estéticos, que são fashion, style, positivos ou que simplesmente funcionam, isolado de um outro conjunto de coisas que não devem ser mostradas, de jeito nenhum (a não ser em ocasiões socialmente corretas), porque são down, feias, incômodas e que, do ponto de vista comercial, são portanto negativas, não funcionam, sendo impróprias ao consumo ? ou não recomendadas ? aos olhos daqueles indivíduos considerados normais.

E quem seriam neste contexto tão patologicamente televisivo os normais do Brasil? São aqueles 10% que estão em pleno gozo de seus direitos de renda e cidadania, gente que, até prova em contrário, é predominantemente branca, beneficiária, como vimos, de um sistema de cotas firmemente assentado em mais de 500 anos de exclusão e invisibilização do outro.

A questão básica portanto passa a ser: por que, no contexto desta separação entre aqueles que têm daqueles que não têm ? uma separação que, apesar de odiosa, poderia ter como atenuante o fato de ser naturalmente apenas social ? o componente étnico, racial é tão determinante? Será inteligente (para não dizer justo ou correto) insistir numa imagem nacional tão despudoradamente falsa como esta que nossa mídia difunde, uma imagem calcada no perfil étnico dos brancos, tornando virtualmente invisível todos os 90% restantes de não-brancos?

Afinal, serve para que a imagem daquele olhar constrangido do crioulinho magrelo, que tenta fazer malabarismo no sinal fechado? O que podemos fazer com esta imagem tão perturbadora senão deletá-la de nosso HD emocional, assim que o sinal se abrir? Não seria porque ela não serve para vender nada, senão a nossa brasileiríssima iniqüidade?

Deve ser por isso que, do ponto de vista estritamente imagético, daqueles registros sobre nós mesmos que legaremos à posteridade, a maioria esmagadora dos elementos culturais, por exemplo o teatro, a literatura, as telenovelas etc., continuam a ser, ad infinitum, simbolizados na maior parte das vezes, por personagens e atores do perfil étnico hegemônico.

Ficção eternizada

Na literatura, entre a mais recente exceção à regra ? Paulo Lins ? e a última já se vão mais de um século. Antes de Cidade de Deus, a última história foi aquela que narrava a pungente dicotomia entre a luz e a escuridão, representada pelo simbólico conflito ideológico latente, na obra de dois de nossos maiores escritores, ambos negros: Machado de Assis, aquele que ascendeu na sociedade branca tornando literariamente invisível sua própria negritude, e Lima Barreto, aquele que, ao contrário, morreu louco tentando iluminar a sua (e a nossa) própria condição racial e suburbana, em emocionados romances.

Para o alívio de nossa claudicante nacionalidade, o cinema ? a arte da luz ? tem sido, desde os seus primórdios, um veículo mais aberto à visibilidade dos não-brancos no Brasil. Grande Otelo, um dos nossos atores mais geniais, cresceu como o Moleque Tião, junto com o cinema brasileiro, seu meio de vida e habitat principal. Entre o apreço anárquico de Orson Welles e Joaquim Pedro de Andrade e o rigor discreto de Nelson Pereira dos Santos, o negro Otelo acabou virando a cara do cinema brasileiro.

Nas dimensões hospitaleiras do veículo cinema, da tela grande, couberam também muitos outros atores não-brancos fabulosos, entre os quais, no âmbito de dramas empolgantes, tivemos Eliezer Gomes, o Tião Medonho (do clássico Assalto ao trem pagador), que foi também o caseiro psicopata de Anjo negro, de Walter Hugo Khouri, e o escravo-cavalo de Joana, a francesa. Um ator autodidata, de dimensões shakesperianas, segundo disse um crítico na época, mas, quem se lembra?

Belo e bravo cinema do Brasil. Bucólicas ou violentas imagens, suburbanas ou rurais, às vezes sagas grandiosas, nas quais os não-brancos apareceram sempre com a alma de certo modo inteira. Generoso e ainda efêmero cinema nacional. Sempre tão precário como indústria.

É talvez por isso que, na qualidade de arquétipos em si mesmas, aquelas pessoas acabaram representando todos os papéis, todos os amores, dores, ditas e desditas; toda a ficção palatável ao imaginário daquela parcela da população que, segundo o seu próprio ponto de vista, realmente conta. Pessoas que consomem bens e serviços, que pagam impostos. Aquela gente "bonita e interessante" que, como podemos facilmente constatar olhando na TV, é majoritariamente branca (se necessário, amorenada por algum tipo de bronzeamento artificial).

Não seria a esta altura um tanto ou quanto ingênuo achar que os outros 90%, a massa enorme de espectadores desta dramática hipocrisia, vão continuar acreditando nesta ficção indefinidamente?

Bulbul e La Benguell

De vez em quando um mea-culpa doloroso é carpido por estes 10% de incluídos. Geralmente nas telas do cinema, momento no qual a imagem dos 90% mais feios aparece gloriosamente colorida, incômoda e corrosiva, tanto aplacando culpas internas (como autoflagelação de mentirinha), quanto desmascarando internacionalmente nos Hollywoods e Berlins da vida, a cegueira extrema daquele Brasil branco, sarado e siliconado, que não cansa de olhar o outro Brasil pelo retrovisor.

O pior é que, ao que tudo indica, o grande e perturbador aspecto do problema não é ainda este. Não. Não é. A coisa é ainda um pouco pior. Pasmem se ainda puderem mas, pelo que se vê exposto nesta mídia, é branca também a maioria das pessoas comuns visíveis, os transeuntes flagrados por câmaras fotográficas ou de TV, dando opiniões e entrevistas, freqüentando praças de alimentação de shopping centers.

São esmagadoramente brancos, do mesmo modo, os freqüentadores de bibliotecas, de cibercafés, de bares genéricos ou temáticos, de centros culturais, assim como o são os professores universitários, os aposentados com dignidade, os funcionários públicos acima de meio escalão, as socialites autênticas ou emergentes, as recepcionistas de lanchonete ou de butique, os modelos e manequins, os praticantes de cooper na orla, os ciclistas e motoristas de fim de semana, até os afogados nos passeios de escuna o são. Do mesmo modo, branca é a maior parte dos espectadores de cinema e teatro, os atletas de esportes (normais ou radicais), assim como também são brancos a maioria das prostitutas do calçadão, os jogadores de frescobol, de voleibol, de basquetebol. Cá entre nós, já notaram que são cada vez menos negras também as empregadas de telenovelas?

Milton Santos, o brasileiro que chegou a ser considerado o maior geógrafo do mundo (ele mesmo, um dos muitos invisíveis gênios negros deste país), costumava perguntar onde estaríamos escondendo os nossos milhões de não-brancos. Em guetos infectos como na antiga África do Sul? Seriam mesmo guetos infectos as nossas milhares de favelas? Ou não?

A relativa invisibilidade de não-brancos em nossa televisão, aliás, é um episódio digno de várias novelas. Desde o tempo do dramalhão Direito de nascer, no qual um ator branco apareceu pintado de preto, passando pelo beijo ? até hoje escandaloso ? do crioulo Zózimo Bulbul na loura Norma Benguell, pouca coisa mudou.

Caráter de omertá

Grande Otelo, Milton Gonçalves, Antônio Pompeu, Marcos Vinícius, Cosme dos Santos, Paulão Barbosa, Luiz Antônio Pilar, Maurício Gonçalves, Norton Nascimento, Lui Mendes, entre outros, são parte de uma dinastia de duas gerações que, com raras exceções, sempre representou eternos estereótipos do bandido, do policial, do porteiro, do traficante, do motorista e, quase sempre, do indefectível escravo doméstico, assim meio Uncle Thomas, meio Pai João.

Também para duas gerações de atrizes a mesma galeria de tipos. Ruth de Souza, Chica Xavier, Zezé Mota, Neuza Borges, Iléa Ferraz, Mariah da Penha, Isabel Fillardis, Thaís Araújo, entre tantas outras, revezam-se em papéis similares, geralmente jovens mucamas oferecidas, velhas escravas resignadas (ou alegres e prestativas domésticas). Às vezes, para variar, desbocadas prostitutas.

A não ser quando representando escravos de alguma senzala-padrão, os atores negros de nossa teledramaturgia quase nunca são ocupados assim, em grupo, em núcleos (como ocorreu aliás uma vez, quando uma família negra de classe média exibiu seus conflitos na TV). Geralmente as telenovelas, quando existem papéis específicos "para negros", costumam ocupar de cada vez apenas um ou dois atores ou atrizes negras "de plantão". Este plantão envolve sempre a mesma galeria de personagens estereotipados citados, o que faz com que a carreira de ator ou atriz para negros no Brasil seja uma atividade de pouco ou nenhum futuro, atraente apenas para os loucos mais vocacionados.

A natureza e a dinâmica dos mecanismos que acionam esta invisibilidade a que estão relegados os não-brancos em nossa teledramaturgia são dois grandes mistérios de nossa sociologia.

Tudo nasceria de um acordo tácito entre teledramaturgos? Seriam mecanismos regidos por secretos memorandos internos trocados entre a alta cúpula das emissoras? Estariam baseados em estratégias de comercialização, em pesquisas de mercado nas quais o consumidor não-branco apareceria como um segmento desinteressante ao mercado? Ou seria culpa da desmobilização política da classe, do conjunto de artistas negros, da opinião pública não-branca deste país?

Talvez seja esta a faceta mais cruel do racismo à brasileira: seu caráter de omertá, a lei do silêncio, instituição fantasmagórica mas onipresente, rígida e complexa, apesar de não estar escrita; tácita; sórdida porém tolerável; seguida à risca por uma multidão de cúmplices, beneficiários de uma injustiça impossível de ser inteiramente identificada e compreendida pelas vítimas, porque não pode ser atribuída diretamente a ninguém, já que todos os indivíduos que a praticam aprendem, desde de criancinhas, a repetir o surrado discurso que diz: "Se há racismo, os racistas são os outros".

Sumindo, sumindo…

De todo jeito, se todos nós sabemos que um rostinho levemente europeu definitivamente não corresponde ao perfil étnico da maioria de nossa população, o que estaria havendo então? Algum tipo de loucura, de neurose coletiva? Estaríamos vivendo todos um problema tão grave de auto-estima que, mergulhados numa profunda crise de identidade, acabamos por nos atolar na paranóica negação de nossa própria imagem? Ou seria uma cínica e esperta "ação afirmativa", algum corporativismo racista do tipo "primeiro o meu, depois o do judeu"?

Seja lá o que for, é bom que deixemos logo de ser brancos para sermos francos. Já não é possível encontrar inocentes nesta trágica história eivada de sutis omissões e comodismo interesseiro.

Se não nos surpreendemos mais com isto, indignemo-nos, pois!

Dizem que um dia destes um apatetado George W. Bush perguntou ao presidente do Brasil: "Vocês tem mesmo negros por lá?"

Rezemos à Alá para que Superman-Bush, num dia desses (atrás de nossa água potável, quem sabe?), não decida exterminar ou confinar em Guantánamo, de uma vez por todas, os nossos milhões de negros, quem sabe para impedir que eles, reagindo sufocados a esta eterna invisibilidade, a esta inexistência digna de ficção científica, de um sombrio contexto tipo Matrix, acabem se transformando em espalhafatosos xiitas pós-modernos.

Rezemos sim. A sério. Antes que, sem nenhum exército ou população que defenda nosso Brasil cor de anil, em resposta a um destes Bushs da vida, só nos reste dizer, já com as mãos para o alto:

"Tivemos negros sim mas, com o tempo, eles foram sumindo, sumindo…"

(*) Músico e pesquisador da Uerj