Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A ditadura do dinheiro louco: irremediável, irreversível?

Betch Cleinman

 

N

esses tempos de flutuação, oscilação, turbulência, das esferas econômicas, não adianta apertar o cinto ou a mão do vizinho. Não basta torcer para que após a tormenta, não somente a bonança retorne como também a compreensão dos acontecimentos. Como não se acredita mais com tanta fé em castigos divinos, a tendência é voltar a esperança para os especialistas, como os únicos seres capazes de trazer um pouco de luz ao caos. A imprensa brasileira, com seus enormes espaços dedicados à economia, convoca peritos, burocratas, consultores, banqueiros, ex-ministros, ex-diretores de um algum órgão oficial para nos explicar a modernidade e os seus efeitos. Não há mal que não venha para o bem, não é verdade?

A presença dos especialistas exclui da discussão o cidadão, pois a mídia lhe dá a impressão de que determinados temas só podem ser tratados por peritos, ficando os demais mortais impedidos, por ignorância, dela participar. É preciso que todos participem da discussão do modelo econômico, que afeta a todos de maneira distinta.

Como são patéticas, no entanto, as tentativas didáticas de transformar ideologia e crenças em fundamentos lógicos e racionais. Quanto esforço não é despendido para passar a idéia de fatalidade, e de que fora dessas medidas não há outras alternativas possíveis. Como bem diz o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos “quem tem poder para difundir notícias tem poder para manter segredos e difundir silêncios; tem sobretudo o poder para decidir se o seu interesse é mais bem servido por notícias ou por silêncios”.

Vejamos alguns exemplos, que nem de longe pretendem ser exaustivos, mas apenas ilustrativos. “O mercado está nervoso, sensível a boatos, e, conforme alguns operadores relataram, a atuação do governo não está ajudando. […] Houve quem suspeitasse que isso seria acompanhado por alguma restrição ao capital externo que atua nas bolsas nacionais. Outros acreditam que a ausência de cobrança por 90 dias aumentará o volume de negócios nas bolsas do país.”(Jornal do Brasil, 23/1/99, p.13) “Sempre achamos que nosso regime cambial estava andando bem, mas não conseguimos mudar a opinião do resto do mundo”, completou Francisco Lopes, presidente do Banco Central. Ele e Pedro Malan ficaram sós. E se ressentem também da falta de bons operadores, de quem conheça os truques do mercado, no governo.”(Jornal do Brasil, 24/1/99, p. 18) “O presidente do Morgan Stanley, Francisco Gros (que já presidiu o Banco Central brasileiro, e, como muitos outros, bandeou-se do setor público nacional para o capital financeiro internacional – lembrete meu) descarta totalmente um descontrole cambial. ‘Esse conceito não existe. O país não desapareceu, continua a existir com capacidade produtiva. O que há é simplesmente gente muito nervosa, perdendo dinheiro. Num início de liberação de câmbio, há forte elevação da taxa para depois voltar. Fora isso, é chororô de perdedor”. (Jornal do Brasil, 24/1/99, p.18) Quer dizer que o desespero das famílias dos milhares de desempregados que começam a invadir as ruas das cidades não passa de “chororô de perdedor”? Bem que os jornais insistem em nos fazer entender que a globalização provoca perdas, mesmo para aqueles que não jogam na Bolsa.

Esses trechos, que aparecem no meio de textos, embolados no interior de uma matéria, revelam como os especialistas, mesmo a posteriori dos fatos críticos, não conseguem explicar a tormenta nem propor possíveis soluções. À admissão da falta de bons “jogadores” no time do governo somam-se suspeitas e crenças, ingredientes que nem de longe fazem parte de uma receita científica. Como poderemos, então, largar tudo nas mãos do mercado, se além de falta de legitimidade democrática, é medroso e reage como um simples bezerro desmamado em um estouro de boiada?

No filme americano Cartas na mesa, atualmente em cartaz, o aprendiz de jogador conta que há milionários que perdem milhões em Las Vegas, somente pelo prazer de participar de uma mesa de jogo com algum campeão . Será que os nossos dirigentes tão cosmopolitas, com trânsito fácil nas instituições financeiras internacionais, estão apostando nossos futuros e a soberania nacional nos panos verdes, apenas pelo prazer de estar na mesa com os grandes?

A ilusão de neutralidade através da voz dos especialistas – Não são apenas os economistas e seus “derivativos” que são chamados para dar a última palavra sobre os acontecimentos, calando as múltiplas dúvidas dos cidadãos. Os advogados, nas horas de crise, também são convocados para esmagar com seus conhecimentos técnicos legais qualquer tentativa de divergência política. Apesar de ninguém poder alegar desconhecer a lei, no Brasil o Direito, tal como é ensinado nas faculdades e mostrado pela mídia, é meramente uma disciplina técnica, suscetível de ser apropriada apenas por peritos. Assim, é sempre preciso contar com a boa vontade desses expertos para termos acesso aos nossos direitos. Aqueles que detêm o monopólio das informações jurídicas também tentam impor a idéia de que o Direito é uma ciência exata, e não uma construção passível de várias interpretações.

A Folha de S. Paulo, para evidenciar sua imparcialidade ouviu três advogados a respeito do anúncio do governador Itamar Franco de fazer a moratória por 90 dias das dívidas do governo mineiro. Curiosamente, os três tinham a mesma opinião, refletida no título: “Para advogados, há quebra de contrato”. (FSP, 10/1/99, p.10) Foram consultados um articulista do jornal, um professor de direito administrativo da PUC-SP e um outro de direito constitucional também da PUC-SP. A matéria conclui com a seguinte observação do professor de direito administrativo, Carlos Ari Sundfeld: “O Estado diz que não tem dinheiro, mas tem patrimônio. É uma situação bastante contraditória”.

Esta aparente contradição entre dinheiro e patrimônio público só me foi esclarecida com a leitura de um artigo do governador Olívio Dutra, do Rio Grande do Sul em que propõe o resgate do pacto federativo: “A renegociação assinada pelo governo anterior determina que, caso o Banrisul não seja privatizado, a parcela subirá de 13% das receitas líquidas a um percentual que pode chegar a 17%. Portanto tenta forçar a venda do banco estadual.” (FSP, 16/1/99, p.3)

Até deparar-me com essa informação acerca da imposição aos estados pela União da obrigação de privatizar seu patrimônio para obter taxas de juros menos indecentes, não tenho lembrança de ter lido em algum jornal referência a essa cláusula de força (como não li na imprensa brasileira nada de substantivo sobre o Acordo Multilateral de Investimentos, o Forum antiDavos). O silêncio acerca do rolo compressor da União sobre estados e municípios é comparável à normalidade com que o esmagamento do Legislativo e Judiciário pelo Executivo é encarada pela mídia. Entretanto, em nossa Constituição está disposto no artigo 2 que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciários”. Não está escrito em nenhum lugar de nossa Lei Maior que os outros Poderes devem submeter-se às ordens do Executivo, estando as atribuições de cada Poder devidamente definidas. O artigo 18 dispõe que “União, estados, Distrito Federal e municípios são autônomos”. Mas a imprensa também não perde uma oportunidade de martelar a idéia de que nossa Carta Magna está ultrapassada, sem se dar ao trabalho de aprender a conhecê-la.

Quando o futuro é notícia

A sexta-feira, 29 de janeiro, foi um dia de boatos, corrida aos bancos e de o dólar ultrapassar a barreira de dois reais. Foi também a inauguração da sede paulista da TV Globo, com a presença do presidente e de autoridades. O Jornal Nacional apresentou uma reportagem em que mostra os estúdios do mais moderno centro de telejornalismo, com suas máquinas dotadas das últimas invenções tecnológicas. Para provar como esse novo pólo global em São Paulo estará perto dos acontecimentos da cidade, fazendo jornalismo de contigüidades, mostra várias câmeras espalhadas pelo cotidiano controlando os movimentos dos paulistanos. A esses olhos já implantados, a Globo promete acrescentar seu arsenal eletrônico da última geração: para exibir cenas dramáticas, como a do episódio da favela Naval em Diadema, ou captar momentos de ternura anônima , como um cachorro que não olha para frente e bate com o rosto no poste. “Uma parte do que de importante ocorre no mundo ocorre em segredo e em silêncio, fora do alcance dos cidadãos. O dilema para a democracia daqui resultante é que os segredos só podem ser conhecidos a posteriori, depois de deixarem de ser, depois de produzirem fatos consumados que escaparam ao controle democrático”, adverte Boaventura de Sousa Santos. Será que a Globo também voltará suas câmeras para os segredos e silêncios, fazendo-nos partilhar das inside information que fazem a fortuna de tantos especialistas, aclamados pela mídia? O presidente brasileiro encerrou seu discurso exclamando: “Eu acredito no Brasil, eu acredito na Rede Globo”. E você?