Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A fila dos insensatos

José Antonio Palhano (*)

 

D

omingo, 10 horas da manhã, principal cruzamento da maior avenida de Campo Grande, MS (700 mil habitantes). Trânsito pesado, três quarteirões engarrafados. Homens e mulheres, jovens em sua maioria, desdobram-se entre os veículos para atender, aproveitando o tempo vermelho do sinal, todos os motoristas que, de braço estendido para fora, aguardam sofregamente sua vez.

Dois, três, às vezes quatro semanários diferentes chegam assim, gratuitamente, às mãos do seu ávido público-alvo. Eis aí um retrato fiel da chamada imprensa regional no país. Ou, ao menos, de uma sua mui dinâmica modalidade, dada a crescente variedade de títulos que vão surgindo em proporções visivelmente crescentes: Edição Extra, Jornal de Domingo, O Palanque. Tais publicações têm, em comum, o patrocínio, nem sempre escancarado, do governo estadual da hora e da sua bancada. A fórmula, que tem se revelado um verdadeiro achado, é simples: denúncias bombásticas na primeira página, que geralmente ostenta a foto de um determinado figurão, ao lado de um texto resumido de suas realizações, alguma inauguração próxima ou o anúncio de mais uma refrega com seus adversários. Nas páginas centrais, além de fartíssima publicidade, a indefectível coluna social, a continuidade das matérias políticas (é sagrada a foto de um prefeito do interior, ora a desfiar seus feitos de estadista, ora a convocar a população da capital para mais um glorioso aniversário do seu longínquo município que, graças à sua competência, probidade e sensibilidade social, agora vai), e as ocorrências policiais de praxe.

Não caberiam aqui aferições qualitativas de semelhante mídia impressa. Algo distribuído desta maneira exime-se antecipadamente de seguir padrões de qualquer espécie, reservados aos concorrentes que custam dinheiro. Ao contrário, impõe uma postura perniciosamente passiva ao seu leitor que, inconscientemente grato pela oferenda dominical, renuncia inapelavelmente a refletir sobre o que está levando para casa. A prática de ler jornais (ou a arte de fazê-los) torna-se então refém de pensatas populares até aqui reservadas à celebração de festejos e mimos de natureza diversa, já que físicos, materiais: “De graça até injeção na testa”, “A cavalo dado não se olham os dentes”.

Considerações sobre o ler jornal sem pagar justificam-se em função do tema, flagrantemente predominante, que pautou a última edição deste OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA: a independência, o senso crítico e a densidade ética da grande mídia nacional, notadamente em temporada de eleições gerais, na qual a performance das pesquisas fez as vezes de catalisadora de polêmicas e análises preocupantemente pessimistas e indignadas.

Afirmar que jornais do interior não têm nada a ver com as grandes publicações, por dizerem de costumes mais assim sertanejos, é asnice que deve ser desde logo descartada. Quando menos pela prosaica imposição mercadológica a que há muito estão sujeitos os grandes jornais, obrigados a chegar a praças mais e mais remotas, e pelo infinito alcance da Internet. Sem falar em parabólicas que, plantadas em tabas distantes, teimosamente subvertem as nossas nobres intenções de conservar a integridade cultural dos selváticos. Assim, na hora de assistir a um telejornal ou de ler um grande diário, como opinará este leitor, exposto que está à insidiosa, lenta e assintomática lobotomização dominical? O caso relatado acima é, sem favor nenhum, uma amostragem do que rola por aí.

A propósito, o Nordeste também conta com a sua variável jornalística gratuita, que guarda características bem específicas. Em João Pessoa, desde a década de 80, a happy hour dos points locais atinge seu clímax no momento em que irrompe a Kombi que traz o material tão ansiosamente aguardado e rápida e festivamente distribuído. A conversa dá lugar então ao indescritível deleite de panfletos que rigorosamente contentam-se em publicar centenas e centenas de fotos das pessoas nas mais diversas situações que de qualquer maneira digam de festas ou acontecimentos que fizeram por merecer ampla divulgação e singular deslumbramento. As legendas, bem de acordo com a assumida e idolatrada futilidade, resumem-se em nomear os personagens, todos clicados em expressões faciais que não deixam dúvidas da sua importância e do seu status.

Toda e qualquer reflexão do papel da mídia, aqui no OBSERVATÓRIO tão saudavelmente questionado, cobrado e criticado, estaria então irremediavelmente comprometida com uma antecipada leitura da nossa formação cultural, altamente complexa na medida em que mais e mais fermentada em tecido social fria e implacavelmente exposto à esgarçadura e à ruptura, porém paradoxalmente perene. Se a expressão “a banca da esquina” já sugeriu exclusivamente desdobramentos mais consistentes, uma incursão prosaica e enriquecedora na qual o bom astral incluía o indispensável cumprimento ao jornaleiro, ou até temas de crônicas, é necessário constatar que a banca já não está sozinha.

Anda (ou fica), lastimavelmente, em variadas companhias: o jornalzinho que o político ajuda a distribuir de graça, garotos que insistem em limpar o pára-brisas do carro a mando de adultos clandestinos, garotas que se oferecem, meninos e meninas pedintes que mal saíram da condição de lactentes (e cujas mães os empresariam, no jargão modernoso).

Se tudo isto é tão bem aceito, a ponto de bordar paisagens urbanas à guisa de padarias, bancas de jornais e postos de gasolina, mais e mais se acatará uma imprensa que convenientemente passe ao largo de conjunturas tais – a estética da dissimulação bem de acordo com a indiferença coletiva que marca a ferro e fogo nosso cotidiano.

Talvez seja útil atentar para uma tese que diria da assimilação ativa da miséria, a qual denuncia quão grave é nosso erro em quantificar a dita cuja somente através da interpretação de indicadores sociais, desprezando a crescente e eficiente absorção dos chamados conceitos miseráveis e sua conseqüente incorporação à agenda dos costumes tupiniquins. O miserê indiano, mal comparando, seria assim conservador, contido, silencioso, pétreo e mais conformado, por inconfundivelmente místico: banhar-se e defecar em rios sagrados, adorar vacas, fomes e febres que se eternizam graças a respaldos espirituais e/ou transcendentais. Aqui não. Nossa volúpia rumo à modernidade faz com que arrastemos junto a favela toda, com suas bicicletas e tênis roubados, meninas de michê, maridos espancadores, o papagaio e o cachorro. Legitimamos assim alguns dos seus valores, quando menos por cevados em heróica sobrevivência, e importamos de lá também a esperteza e a ligeireza moral (o país do jeitinho é a nação dos espertos) próprias do pedaço.

Aí contratamos o Ratinho, que nada mais é que a representação falante da pororoca ruidosa e apoteótica decorrente do encontro da esperteza favelada com a esperteza elitizada, cá debaixo. Dá uma baita audiência. Além de dar também a oportunidade de badalarmos o acesso à TV das camadas menos favorecidas, pacifica e democraticamente. Assimilar ativamente a miséria seria então essa coisa eficientíssima de, via mídia, gerar receitas gigantescas a partir do garimpo em nosso imenso e inesgotável manancial de miserabilidades.

Evidentemente que tal processo tem, além dos custos sociais de rotina (balas perdidas são o efeito colateral mais visível e exuberante do macaréu entregue aos cuidados do Ratinho), outro tipo de custo, este marcadamente cultural, de vastos prejuízos intelectuais ou, se isto soa pernóstico, potente indutor de uma grave crise de critérios. E aqui se insere o fenômeno dos jornais gratuitos, amorais por definição.

Uma possível contaminação da mídia maior por esta subcultura não está fora de cogitação. Afinal, para ficar só num exemplo, a opinião pública e conceituados colunistas não se cansaram de dizer de influências de políticos diversos no noticiário eleitoral. Sem contar a festa que é escrever sobre os espaventosos picos de audiência de certos programas de TV, tão assimilados que são repercutidos na conta de rankings esportivos, como no turfe, no basquete ou na Fórmula 1.

O espectro deste contrafluxo negativo, do semanário gratuito para a grande mídia, tão voraz da notícia pronta, empacotada, que antecipadamente suprime a expectativa do leitor na busca de alguma surpresa criativa (já que automaticamente responde às suas demandas mais comezinhas), da ligeireza científica em anunciar alívios e curas e de primeiras páginas e bancadas tão saturadas de oficialismo, certamente é um grave sintoma com lugar garantido nas preocupações de articulistas e leitores deste OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA.

(*) Médico e cronista.