Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A Idade Mídia

TEMPOS MODERNOS

Gabriel Perissé (*)

É conhecida a afirmação de Hegel de que a oração matinal do homem moderno seria a leitura do jornal. Era a constatação de que estávamos cada vez mais distantes da Idade Média, tempo em que se começava o dia pensando em Deus.

Ingressamos na Idade Mídia. Acordamos ouvindo notícias, recebendo enxurradas de e-mails. Seqüestrados por meia dúzia de manchetes, todos sabem o que todos sabem. Temos na ponta da língua o a-e-i-o-u do dia-a-dia, ou da semana-a-semana: Iraque, os sem-terra, vírus de todos os tipos, dólar e Lula.

Por isso, com informações que se repetem da manhã à noite, de segunda a segunda, desde a rádio que toca notícia, passando pelos sites até o telejornal noturno, corremos o risco de regredir à Idade Muda, se pararmos de pensar, repetindo o repetitório.

Regredimos para a Idade Muda, ou entramos na Idade do Repeteco, se o que fizermos for repetir o que todos repetem.

Plagiando o escritor Norman Douglas, que definia educação como “fabricadora de ecos”, podemos pensar na mídia como a fabricadora do eco de cada dia. Na mitologia grega, Eco era uma ninfa falante e comunicativa que, a pedido de Zeus, distraía Hera, esposa oficial do senhor do Olimpo e protetora do casamento (bela ironia), sempre que este ia traí-la. No dia em que percebeu a tramóia, Hera castigou Eco. Tirou-lhe o dom do Logos, condenando-a a nunca mais ser a primeira a falar, conforme palavras do poeta Ovídio: “Com essa língua que foi para mim enganosa, não te serás dado exercer mais que um fraco poder. Tu não farás da fala mais que um breve uso”.

Sem iniciativa verbal, Eco só conseguiria repetir os últimos sons das palavras que lhe dirigissem.

O dramático (o frustrado) encontro entre Eco e Narciso é inspirador:

? Ouço barulhos. Quem está aí?

? Está aí…

?Mas aqui só estou eu e mais ninguém!

?Ninguém…

?Se alguém está aí, apareça agora!

?Ora…

? Não se faça de rogada, depois pode ir embora!

?Ora…

?Venha para fora!

?Ora…

?Terei que esperar a noite toda até o nascimento da aurora?

?Ora…

Os jornais e revistas como caixas de ressonância de idéias e palavras que vêm de outras caixas de ressonância. E nós, consumidores diuturnos de notícias iguais, somos o eco que não tem mais ego. Porque o eco não nega, não breca, não oferece resistência. A palavra do ego é cega, e não tem fôlego.

(*) Doutor em Educação pela USP e escritor