ELEIÇÕES NA FRANÇA
Ivo Lucchesi (*)
Tencionava, para esta edição, abordar diferente tema. Entretanto, a leitura do artigo de Alberto Dines ("Esquerda burguesa", publicado na edição de 27/4/02 do Jornal do Brasil, remissão abaixo), mudou os rumos previamente traçados.
Embora o teor do artigo do Dines (o fato eleitoral ocorrido na França) esteja revestido de plena pertinência, algo nele instigava o exercício de outro enfoque, sem tornar inválida a compreensão proposta pelo artigo mencionado. Na verdade, penso que as duas visões sejam complementares entre si.
É certo que Dines terá razão ao afirmar que "(…) a esquerda bonne vivante não interrompeu o piquenique dominical". Por outro lado, não é menos verdade que, em países cujo voto não é obrigatório, o índice de abstenção tem crescido ? em recente eleição na Holanda, foi registrada ausência de eleitores em 30%. Percebe-se, portanto, em segmentos populacionais mais letrados, certa tendência a um abandono do "voto" que ? e aqui é o ponto passível de merecer outro olhar ? não significa necessariamente apenas a acomodação a uma fórmula burguesa. A ausência dos eleitores de Jospin pode abrigar também um significado oposto: a clara compreensão quanto ao progressivo esvaziamento do dado político como fator transformador, em favor do quanto a classe política se fez objeto de manipulação das articulações econômicas ditadas pela rede do capital.
Aprendendo com a História
A História parece já haver proporcionado inúmeras lições no que diz respeito a crenças em modelos e métodos decorrentes dos interesses macrossistêmicos. A questão, outrora galvanizadora de acirrados debates entre "direita" e "esquerda", envelheceu não pelos seus próprios pressupostos pragmáticos e teóricos. O envelhecimento deriva muito mais da depuração de um "olhar" que aprendeu as lições aplicadas em larga escala em todo o Ocidente liberal. A "direita" sempre lida com "interesses"; a "esquerda" (quando autêntica) luta por "ideais". Nesse recorte formulado, pergunta-se: Quem efetivamente de "esquerda" chegou ao poder pelo voto, tendo-se nele mantido ao longo do mandato e, principalmente, pondo em prática um programa de governo de "esquerda"? Sabemos todos a resposta.
O máximo de conteúdo programático com perfil de "esquerda" foi o engendrado pela social-democracia, em meio aos flagelos do segundo pós-guerra. Fora dessa concessão, supervisionada pela ordem do capital, restam processos revolucionários propriamente ditos. É ingênuo pensar que a "queda do muro de Berlim" representa o marco da abolição de fronteiras ideológicas. Muito antes, a lição estava ensinada: a militarização das Américas (Central e do Sul), o embargo da revolução sandinista na Nicarágua, processos fraudulentos de eleições em diversas partes do mundo, entre outros acontecimentos. Ora, a população mais esclarecida já compreendeu como o jogo funciona e, assim, administra também sua via particular. Será que o eleitor letrado da esquerda francesa já não percebeu que a distância, na prática, entre Jospin e Chirac não justifica sair de casa para votar? Essa é a questão. Enquanto Jospin radicaliza o discurso, ciente de que não poderá realizar o que diz, Chirac elabora um discurso sobre aquilo que ele sabe poder fazer. O vácuo derivado desse jogo retórico acaba sendo faturado pelo "gênio do mal": Le Pen.
O inevitável, sim; o horror, não
As manifestações de rua que, rapidamente, se multiplicaram nas mais diversas cidades da França (e fora dela) deixaram seu testemunho devidamente delineado: a memória recente do horror que circundou os países vizinhos da antiga Iugoslávia. A lembrança dos sanguinários conflitos nos Bálcãs trouxe de volta às ruas da França o protesto veemente contra aquele que poderia, uma vez no poder, deflagrar algo semelhante.
O eleitor letrado e consciente sabe quando vale e quando não vale ingressar numa luta. Em outros termos, o eleitorado ocidental hoje sabe o que não mais lhe é factível alcançar e, de certo modo, gerencia sua vida em regime de resignação consciente, ou seja, é um perfil que perdeu a ingenuidade própria dos abrasados ímpetos juvenis e posiciona-se movido por princípio de realidade. Todavia, ele próprio fixa limites para a tolerância máxima. Ao perceber a ameaça à superação desse limite, ele reage no limite da indignação.
Le Pen simboliza o fantasma capaz de acionar os "botões da guerra", à altura de repetir na França o terror que inundou de sangue o teatro dos horrores da não muito distante Iugoslávia, razão pela qual, também em outros países (Bélgica, Holanda, Itália, etc), protestos públicos foram protagonizados. Os 20% dos eleitores de Le Pen traduzem o segmento dos desesperados. Para estes, não há diferença entre o horror de uma guerra e um cenário sem ela. A desrazão desesperada vota em Le Pen; a razão paradigmática e pragmática escolhe Chirac e a razão crítica fica em casa. O resto é fantasmagoria do marketing político e midiático que artificializa o reaquecimento do "jogo político", retirando-o da fria indiferença daqueles que aprendem com a História.
O artigo de Alberto Dines está crivado de razão nos seus argumentos: o jogo político recebeu um tempero aburguesado, como era previsível; por isso, a burguesia o alimenta. "Esquerda" que não se aburguesa não disputa. Este pressuposto vale para todos. Com base nisso, os interesses do capital sabem como monitorar os "agentes políticos". Afinal de contas, são eles que financiam campanhas; portanto são eles também a ditarem o ritmo dos acontecimentos. Na outra ponta, situa-se ainda majoritariamente o "culto à esperança". É legítimo que exista e resista, apenas não é prudente exaltar-se com ele, menos ainda amargar depois o remédio da ilusão.
O eleitor de hoje, filiado à "razão crítica", não se confunde com o ser inerte e domesticado. Ele é simplesmente um ser que não mais se entrega a certas aventuras (desventuras), até como mecanismo psíquico de autoproteção, de modo a melhor regular frustrações, sem recorrer a antidepressivos. É alguém que, para alguns antigos sonhos, já se sabe "carta fora do baralho". Desenvolve, então, a sabedoria com a qual vivencia a "experiência gozosa possível". Só ainda não compreenderam esse fenômeno os "políticos de carreira", com o agravante de estimularem, fora da política oficial, os "carreiristas" (normalmente mais jovens), sempre prontos para, em nome de "ideais nobres", abocanharem vantagens. Nesse "novo mundo", sob a orientação estratégica da "Nova Ordem Mundial", o eleitor esclarecido faz sua opção: vota nesse, naquele ou em nenhum. Sem drama, sem desencanto, caminha na procura da realização viável.
A imprensa, o desespero e a consciência
No tradicional padrão de informar com objetividade, a imprensa também colabora para certo quadro de descrença na "cultura da transformação pelo voto". A neutralidade aparente com que a máquina da informação monta seu noticiário deixa no receptor-eleitor a sensação da inutilidade. Na edição de 26/4/02 (pág. 10), o Jornal do Brasil destacava a matéria de um correspondente do New York Times, Cristopher Marquis: "Agência dos EUA financiou golpistas". A matéria vinha a propósito do recente golpe na Venezuela. Segundo o jornalista, a Fundação Nacional pela Democracia, cujo orçamento anual é de US$ 33 milhões, repassou verba para financiar o golpe e dar sustentação ao empresário Pedro Carmona. Não bastasse a informação em si, a matéria termina com o seguinte texto:
"A agência se excedeu no Chile em 1988 e na Nicarágua em 1989, quando seus fundos foram usados para alterar resultados das eleições".
Ora, pensará o leitor-eleitor: votar para quê, se órgãos oficiais operam procedimentos fraudulentos? É preciso lembrar que matérias desse tipo circulam permanentemente pelo mundo. Elas não geram nenhum efeito?
Na mesma página, ao lado, havia a notícia sobre a França: "Busca a eleitores de Le Pen", assinada por Suzanne Daley, enviada pelo New York Times à cidade de Gisors (distante 1h20 de Paris). Lá pelas tantas, a jornalista destaca o depoimento de um eleitor habituado, até então, a votar em candidatos do Partido Comunista e que, desta feita, votara em Le Pen:
"Eu gosto das idéias dele. Temos de nos assegurar de que os franceses recebam mais e os estrangeiros menos".
Em seguida, há a declaração do ex-prefeito Marcel Larmanou, membro do Partido Comunista, explicando por que o eleitorado da cidade votou majoritariamente em Le Pen:
"Estamos muito amedrontados. Há um temor pelos crimes, mas há medos mais gerais. Estas pessoas trabalhavam a vida toda em uma empresa, mas agora trocam de emprego a todo momento. Companhias se fundem, fábricas fecham. A vida parece estar cada vez mais precária, até mesmo em Gisors. Então, as pessoas gostam quando alguém diz que tudo isso pode ser resolvido".
Esses dois depoimentos são sintomáticos quanto ao que revelam: o primeiro demonstra a contradição profunda quanto ao nível de consciência política. O motivo que fez o eleitor, tradicionalmente afinado com o voto em comunistas, identificar-se com a extrema-direita é completamente incongruente em relação ao argumento por ele exposto. O segundo depoimento traduz a fragilidade do político, dada a subordinação aos impasses gerados pela rede do capital, repercutindo diretamente sobre as dificuldades da vida cotidiana.
Não menos ilustrativa é a entrevista que o sociólogo Loïc Wacquant concedeu ao Jornal do Brasil (28/4/02). Nela, o sociólogo mostra a tendência do eleitorado em fixar-se na radicalidade tanto da direita quanto da esquerda. Foi a votação dos "extremos" e dos "extremistas" da "desrazão desesperada". Os eleitores que apoiariam Jospin migraram para os partidos da extrema-esquerda, totalizando 11% contra outros tantos que foram tratar de suas vidas. Igualmente interessante é o artigo do cientista político Emir Sader ("A direita, hoje"), presente na mesma edição do JB. Sader pontua com bastante acuidade o impasse no qual está vivendo o modelo da política oficial. Lembra Sader, a propósito de mais uma reunião do Fórum Social Mundial, que novas formas reativas surgem:
"Um movimento que hoje se articula mais emtorno de movimentos sociais e civis do que de partidos, mais emtorno de reivibndicações concretas do que de programas gerais, mais em torno de sentimentos de indignação e de valores morais do que de estratégias políticas".
Numa direção crítica não muito diferente, situa-se o sociólogo alemão Robert Kurz que, no artigo "A guerra dos dois mundos", publicado no suplemento Mais! (Folha de S. Paulo, 28/4/02), traça um quadro calcado no desmembramento progressivo por que passa o conceito de Estado Político, na razão direta em que se dá o crescimento de forças revolucionárias e guerrilheiras cujo propósito não é mais o de quererem tomar posse do Estado, exatamente pelo fato de a "Nova Ordem Mundial" se estar encarregando de desmantelá-lo. Assim, essas formações de combate passam a ser migratórias, bem como de tendências difusas, acentuando o ritmo acelerado do esvaziamento da política oficial, concebida pelo imaginário burguês em fins do século 18. Bem, e a vida prossegue…
(*) Ensaísta, doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular da Facha, co-editor do programa Letras & Mídias (Universidade Estácio de Sá), exibido mensalmente pela UTV/RJ.
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