Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A narcotização silenciosa

CASO FELIPE E LIANA

Sérgio Luís Domingues (*)

Ao ouvir recidivas vezes o argumento de espanto com episódios de gravidez na adolescência, jovens que se embrenham em sítio abandonado mentindo aos pais, de como tais fatos poderiam estar ocorrendo em meio a tantas informações na mídia sobre sexo e violência, senti-me quase que na obrigação de desenvolver esta breve reflexão sobre o tema.

O fato de estarmos vivendo na "era da informação" não nos torna bem-informados, assim como a avalancha de exposição à sensualidade e à violência não faz com que sejamos mais cuidadosos e nem experts no assunto e nem mais ligados aos perigos que a prática irresponsável do sexo pode causar.

Ao contrário disso, o acúmulo de informação serve para "narcotizar" o cidadão em vez de estimulá-lo. A esta teoria os sociólogos americanos Merton e Lazarsfeld chamaram de "disfunção narcotizante". Condescendentes, preferiram disfunção, e não função, partindo da premissa de que a narcotização não seria interessante à complexa sociedade moderna com grande parte da população politicamente apática e inerte.

O trabalho de pensar

Na disfunção narcotizante o indivíduo bombardeado pelos meios de comunicação, com mensagens de toda espécie, confunde o fato de conhecer os problemas cotidianos com a prática salutar de atuar sobre eles. Ou seja, nossa consciência social permanece inalterada e, em vez da participação ativa nos problemas sociais, adquirimos vasto e mero conhecimento passivo, e nada mais.

A missão da imprensa é informar, só não se dão maiores explicações a respeito do que exatamente o cidadão será informado. Há milhares de fatos acontecendo e seria impossível informar tudo. Assim, é preciso escolher o que será informado. E as escolhas que a imprensa faz revelam o que ela, enquanto instituição, pensa, ditando assim o que o cidadão deve pensar.

Mas pensar não é apenas ter as informações. Pensar é o que se faz com as informações. Desta forma, ao se entupir de notícias o cidadão se livra do trabalho de pensar. E isso é narcotização da consciência. Por isso a menina engravida na adolescência, mesmo falando o dia todo sobre camisinha. Por isso o casal de adolescentes vai a um sítio abandonado acampar em meio a tanta informação sobre violência, divulgada dia e noite pelos meios de comunicação. Infelizmente estavam narcotizados psicologicamente pela mídia.

Tensão e dissonância

Segundo a teoria da estatística da informação, a idéia de informação está sempre ligada a seleção e escolha. Informação, à luz desta teoria, se refere não a que espécie de informação, mas a quanta informação. Só pode haver informação onde há dúvida e dúvida implica existência de alternativas de escolha, seleção e discriminação. A superexposição não deixa espaço para nada disso.

Já em 1950 o papa Pio XII preocupava-se profundamente com o desenvolvimento de estudos sérios sobre os meios de comunicação. Vejamos o que dizia em 17 de fevereiro de 1950:


"(…) Não é um exagero dizer-se que o futuro da sociedade moderna, bem como da estabilidade de sua vida interior, dependem em grande parte da manutenção de um equilíbrio entre a força das técnicas de comunicação e a capacidade de reação do indivíduo (…)".


Há mais de 50 anos o papa falava em capacidade de reação do indivíduo. Merton e Lazarsfeld falaram em disfunção narcotizante em 1948, portanto, dois anos antes deste pronunciamento preocupado do papa.

Um indivíduo inserido numa sociedade narcotizada vê-se impedido de contemplar o surgimento da "biodiversidade intelectual", fenômeno social somente possível com inteligências particulares, cada um com sua contribuição pessoal no processo. Ou seja, sociedade narcotizada é igual a sociedade apática, sem lideranças verdadeiramente forjadas das necessidades e dos anseios populares.

Mas, antes de ser narcotizado, o ser humano passou por outro processo psicológico, a dissonância cognitiva, descrito por Leon Festinger, que consiste no choque de repertório, crenças e valores internos. Este conflito gera uma tensão psicologicamente desconfortável e leva a pessoa a tentar modificar essas novas percepções incompatíveis, a fim de reduzir a tensão ou a dissonância.

O fim da indignação

Nas tentativas internas em adaptar seus valores e comportamento para recuperar a condição de consonância, ou de equilíbrio, a pessoa passa por processos comportamentais que vão de agressão, racionalização (inventar desculpas por não conseguir mudar), regressão (comportamento infantil), fixação (recusando-se a aceitar uma mudança em seus conceitos) até a resignação (estágio apático no qual a mente começaria a ser narcotizada).

Estas verdadeiras batalhas psicológicas travadas diariamente por todos aqueles que são expostos ao bombardeio da mídia, quando não resolvidos de forma satisfatória para a mente, afetam o que Heider chamou teoria da coerência, na qual nossa mente tenta sempre estar em equilíbrio, a fim de compensar toda sorte de "ataques" psicológicos.

Quando este equilíbrio é cortado ocorre a quebra da coerência, e o caminho fica aberto ao surgimento de toda sorte de psicoses e neuroses que muitos, simplificadamente, reduzem a males inerentes à estressante vida moderna.

Desta forma, quando não nos indignamos mais com declarações frias de assassinos hediondos ou de traficante que "ganha" destaque em horário nobre na televisão para dizer que evita tomar calmantes por não querer se viciar, estamos engrossando o exército de homens narcotizados psicologicamente pelos meios de comunicação e, certamente, vamos ter de dizer novamente: que pena, engravidou; ou morreu vítima da informação.

(*) Jornalista pós-graduado em Comunicação e Marketing pela Cásper Líbero